Constituição federal: acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico

AutorFernando Rister Sousa Lima
CargoProfessor do Departamento de Teoria do Direito da PUC/SP. Mestre em Direito pela mesma instituição. Foi pesquisador visitante na Universidade de Estudos de Lecce (Itália). Professor Adjunto do Centro Universitário - UniToledo, Araçatuba/SP.
1 Introdução

Neste artigo, tratar-se-á da Constituição Federal de 1988 como um acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico e político, sem pretensões de cientificidade, tão-somente de cunho didático. A doutrina, principalmente a constitucional, investiga sobre aspectos jurídicos-dogmáticos a carta magna, contudo não é rotineiro encontrar-se trabalhos à perspectiva sociológica, quiçá à luz da Teoria dos Sistemas, elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, também conhecida por Teoria dos Sistemas “Autopoiéticos”2.

A referida doutrina procurou teorizar fundamentada na funcionalidade dos sistemas, na operação fechada, na cognição aberta e na elevada complexidade social. Quebra, por assim dizer, com normas pressupostas imaginárias, como, por exemplo, a norma fundamental Kelseniana, e desqualifica por completo o Direito Natural, de modo a propor descrever o sistema social global e seus respectivos subsistemas com base na diferenciação comunicativa, cuja operação tonar-se-ia possível reduzir a altíssima complexidade social, característica marcante das sociedades modernas. Para atender tal proposta, dividir-se-ão os itens em partes, a saber: 2 – PREMISSAS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DOS SISTEMA; 2.1 O objeto e a proposta da teoria dos sistemas; 2.2 A sociedade como sistema social complexo e contingente; 2.3 Os subsistemas sociais diferenciados, operacionalmente fechados, autopoiéticos e acoplados estruturalmente; 2.3.1 Os subsistemas sociais diferenciados; 2.3.2 A clausura operacionalmente dos sistemas; 2.3.3 Os sistemas autopoiéticos; 3 – CONSTITUIÇÃO FEDERAL: ACOPLAMENTO ESTRUTURAL ENTRE O SISTEMAS POLÍTICO E JURÍDICO; 3.1. A Constituição Federal de 1988 como acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico.

2 Premissas fundamentais da teoria dos sistemas
2. 1 O objeto e a proposta da teoria dos sistemas

A formulação teórica luhmanniana autodescreve os processos e as estruturas da sociedade. Não busca dizer como “deve ser”, mas como de fato é3. A comunicação é ponto-chave na sua teorização, inclusive, a própria sociedade é definida como comunicação. Por meio da reprodução comunicativa que se (re)produz as suas estruturas e a diferenciação sistêmica ocorre4.

A teoria sistêmica desenvolve-se em três vertentes, a saber: a comunicação, a evolução e os sistemas. A teoria da comunicação tem papel relevante, devido às operações dos sistemas serem tidas como comunicação e não como ação. A teoria da evolução aparece como forma de seleção, variação e estabilização e origina as diversas ordens sociais. A última é formada pelo conjunto integrado de conceitos, com intuito de teorizar sobre a sociedade e diagnosticar qual é a operação da sua autopoiesis5. Para tanto, deve ser capaz de compreender os fenômenos que ocorrem dentro da sociedade; explicar o sistema social de forma ampla; posteriormente, ser aplicada aos sistemas menores para construir as respectivas teorias. Seu autor cita como exemplo a Universidade Bielefeld, na Alemanha, e a empresa Coca-Cola6. Propõe-se sistemas auto-referenciais, organizados e reproduzidos por circulação interna de elementos do próprio sistema: um sistema fechado e independente. Baseia-se, entre outras influências, na teoria desenvolvida pelos cientistas chilenos Maturana e Varela, cuja tese central é de que as células humanas desenvolvem-se por elas próprias. Surgiu daí a nomenclatura: “autopoiético7. O curioso é que os autores chilenos não estavam se referindo aos sistemas sociais; portanto, alguns estudiosos, como o próprio Luhmann, apontam uma mudança de paradigma quando do aproveitamento dessas referências8.

Em verdade, pela autopoiesis, promove-se um filtro nos subsistemas sociais pelo qual nem todas as comunicações passam. Quando entram, irritam, o ambiente. Por isso mesmo, são chamados de sistemas operacionalmente fechados; entretanto, por exigirem troca de dados entre os ambientes distintos de outros sistemas, são classificados de sistemas cognitivamente abertos. Sua epistemologia produz-se uma razão interna. Busca integrar o sujeito e o objeto descrito, consequentemente a complexidade deste é reduzida9. A grande alteração, quando se compara com a sociologia tradicional, é a do padrão sujeito-objeto10. Em outras palavras, a Teoria dos Sistemas tem um foco diferente da aplicada à época, anos 70, à Teoria do Direito e à Sociologia11.

2. 2 A sociedade como sistema social complexo e contingente

A complexidade é a totalidade de eventos possíveis. O mundo tornou-se imprevisível, dele podem surgir diversas situações12. Essa complexidade não é

sentido(psíquicos e sociais) dos sistemas não constituintes de sentido (orgânicos e neurofisiológicos)[...].”.planejada – para não dizer controlável – as relações sociais ganham certeza somente após ocorrerem. O futuro é imprevisível. Sobre o tema, Raffaele De Giorgi inicia um artigo, publicado no seu livro Direito, Tempo e Memória, com uma citação de Nietzsche: “Mundo: uma injúria cristã” e, à frente, continua a provocação ao indagar: este é o mundo da sociedade atual? Para que serve uma idéia de mundo? Isso para, em breves palavras, descrever todo o fenômeno pelo qual passou o Direito, a Política e a própria idéia de universalidade da razão humana; ressalta, De Giorgi, o século XIX, quando, pela referida expansão da racionalidade, pensou-se em igualdade (os homens seriam iguais) e todos seriam cidadãos do mundo. Cita, ainda, Marx que, embalado por esses ares, almejava unir os excluídos da sociedade. O século em deslinde (XIX) transcorreu pela razão do Iluminismo. Tentou-se assegurar racionalidade (ou ao menos se acreditava) na construção do bem comum. O fracasso dessas idéias logo veio à tona, como comenta De Giorgi: “Já no início do século a realização destas premissas tornou-se evidente, quando, no teatro do mundo – mundo da razão e da humanidade – começou, para usar a formulação hegeliana, a representação da tragédia na eticidade que o absoluto recita consigo. Uma tragédia que ainda continua.”13.

A história mostrou que pensar em valores universais, em previsão do futuro (sejam nas políticas públicas internas ou externas de nações), controle da humanidade e nas revoluções em nome do bem comum são formas de promover a barbárie. A certeza que se tem quando se fala de Economia, em Direito, no amor e, por que não, em qualquer fenômeno social, é a incerteza do porvir. Complexidade e contingência são palavras de grande valor epistemológico na teoria luhmanniana: a primeira refere-se à realidade das ações. Dito de outra forma, diversidade de alternativas. Não se pode prevê-las e nem controlá-las; enquanto, na segunda, o futuro é apenas previsão, e não se pode esperar o seu acontecimento. Se, atualmente, temos “sim” como decisão, poderíamos ter o “não”. A função de reduzir a complexidade do mundo é tarefa dos sistemas sociais, realizada pelo alto grau de diferenciação comunicativa14.

Ambas (contingência e complexidade) atuam no meio social, habitat do homem livre, vivente num mundo globalizado, no qual a comunicação de massa é incansável na divulgação imediata dos acontecimentos e o mercado torna-se cada vez mais voraz e dominador. A segurança, doravante, é representada pelas guerras: sejam as armadas, sejam as frias. Nos dias hodiernos, invade-se um país em nome da “paz”. Atentados são realizados contra milhares de civis pela mesma “paz”. Também há aquelas pessoas para quem o desarmamento é crucial à diminuição da violência, enquanto outras são a favor do armamento para o controle da mesma violência15.

Dessa maneira, nova ordem instaurou-se e o racionalismo, então supostamente suficiente à construção da justiça, já não serve. A ótica da razão, cada vez mais, torna-se não-universal, mas coletiva, dividida em grupos unidos por diversos motivos, a saber: classes sociais, religião, etnias e, em alguns casos, o ambiente de trabalho. Numa linguagem teatral, a peça é outra!! A imprevisibilidade é a principal característica da sociedade atual. Por isso, é inegável a complexidade das operações sociais16.

A formulação das expressões contingência e complexidade são tentativas de captar os problemas da vida social. Explicando novamente, essa é o fato de que sempre existem outras possibilidades além das já efetivadas. Por sua vez, por aquela se tem que as possibilidades apontadas podem ser diferentes das “apontadas”, ou seja, têm-se duas opções igualmente legítimas à mesma situação. Luhmann relacionou a complexidade à seleção forçada e a contingência ao perigo de desapontamento17.

Há diversas pesquisas sobre a modernidade e o mundo. Segundo o sociólogo em questão, nenhuma delas foi feliz em tal tarefa devido ao fato de que a sociedade sofreu diversas modificações. Transformou-se da sociedade estratificada em sujeito autônomo dotado de dinamismo próprio, não reconduzido à soma da vontade individual, daí imprevisível. Desta forma, complexidade é a produção de diferenças novas ou ampliação de diferenças já realizadas como as principais consequências dessa nova sociedade18.

Como integrante do sistema social, essa complexidade social instaura-se também no sistema jurídico. Não se iludam os defensores da segurança jurídica. O Direito não pode garantir certeza. As comunicações jurídicas (como, por exemplo, os contratos, portarias, decretos – quaisquer gêneros legislativos – e...

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