A Constituição de 1988 e o rompimento com os pactos de silêncio em torno dos quilombos/The 1988 Constitution and the breakdown with the silence pacts regarding the quilombos.

AutorPereira, Paulo Fernando Soares

Introdução: quilombos, terminologia e clausura jurídica

Qual foi a resposta constitucional ao silenciamento que se formou em relação à resistência quilombola? Qual a importância de se estudar a patrimonialidade dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e as suas implicações no campo jurídico? Os quilombos constituíram, no passado, uma categoria jurídica objeto de rejeição, dado o seu caráter de insubordinação, inclusive com viés político, como já vem reconhecendo algumas pesquisas em Ciências Sociais (1).

Para tanto, considerando que o Direito Constitucional demorou um século para reconhecer a resistência quilombola (1888 a 1988), parte-se do dispositivo previsto no art. 216, [section] 5, da Constituição brasileira, para indagar a importância de se estudar a patrimonialidade dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e as suas implicações no campo jurídico. Dessa forma, o texto é sistematizado e aborda os seguintes temas: a) Terminologia e clausura jurídica; b) Insurgência ao sistema jurídico: contraponto à escravização; c) Relações com a sociedade envolvente: complexidade, dinamicidade e o mito do isolamento; d) Invisibilidade dos quilombos (ocultamento/silenciamento/esquecimento); e) A Constituição e o rompimento com o pacto de silêncio em torno dos quilombos.

Carlos Magno Guimarães (1995, p. 69, 73 e 89) defende a compreensão do quilombo enquanto fenômeno portador de caráter político que carece ser evidenciado. Por sua vez, esse caráter pode ser comprovado por via do trabalho de convencimento executado por parcela dos escravizados. Diversas ações voltam-se para a atividade específica de viabilizar a instalação e crescimento dos quilombos, a qual precisa ser entendida como manifestação eminentemente política.

Assim, a rejeição do caráter político do quilombo decorre, dentre outras coisas, de sua conceituação jurídica passada, que o considerava como um fenômeno que subvertia o sistema social, político e jurídico que legitimavam a escravização. Deve-se registrar, inicialmente, que a resposta portuguesa ao fenômeno dos quilombos foi bem posterior à resposta espanhola aos cimarrones, que data de fevereiro de 1571 (libro VII, título V, Ley XXI, publicado inicialmente por Don Felipe Segundo), readequado em agosto de 1574 e, finalmente, consolidado em 1671 (na Recopilación de Leys), na qual estavam na categoria quem havia fugido de seus limites determinados por seus amos durante um período maior do que quatro dias (DE LA SERNA, 2010, p. 89). Apesar da primeira aparição dos quilombos em documentos portugueses ter acontecido anteriormente, só em 1740, como resposta à consulta de Portugal, o Conselho Ultramarino apresentou definição institucionalizada (CUNHA; ALBANO, 2017, p. 159), definindo-o como:

Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele. Posteriormente, como maneira mais eficaz de combatê-los, o número de escravizados diminuiu de 05 (cinco) para 02 (dois) (SILVA, 2000; ALMEIDA, 2002, p. 47; LEITE, 2008, p. 966 e 970; LOUREIRO, 2014, p. 216), demonstrando-se que o conceito teve que ser ressignificado juridicamente durante o próprio período da legislação repressora. Dessa forma, os quilombos passariam a representar importante ameaça simbólica, constituindo o pesadelo de senhores e funcionários coloniais, além de conseguir fustigar com insistência desconcertante o regime escravagista (2) (REIS, 95/96, p. 18).

Se, inicialmente, o Conselho Ultramarino, em 1740, o definiu como "toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele" (LOUREIRO, 2014, p. 216), devido ao aumento do número de quilombos, com mais resistência ao processo jurídico de escravidão, o Estado Imperial teve que alargar o conceito de quilombo, reduzindo o número de membros, que cai de cinco para três nas legislações de governos provinciais (CUNHA; ALBANO, 2017, p. 159). Na Província do Maranhão, por exemplo, o art. 12 da Lei no 236, de 20 de agosto de 1847, considerava que se reputava escravizado aquilombado aquele que estivesse no interior das matas, vizinho, ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de dois ou mais com casa ou rancho (MARANHÃO, 1835-1849). Assim,

Art. 12- Reputa-se-há escravo aquilombado, logo que esteja no interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de dois ou mais com casa ou rancho. A conceituação passou a permear o imaginário e a constituição da memória do que se entende por quilombo, o que causa confusões teóricas e práticas sobre a temática (3) até hoje, principalmente no que diz respeito à rejeição da contemporaneidade das comunidades quilombolas, como forma de negação de direitos, a partir do conceito jurídico formulado sobre quilombo, já que tais definições não corresponderam a todas as experiências do próprio passado, pois o fenômeno era mais dinâmico e complexo do que a própria legislação anti-quilombola, tanto que esta última teve de se adequar, por diversas vezes, a essa dinamicidade.

É importante, também, considerar que os registros oficiais costumam referir-se apenas àqueles quilombos que foram atacados pelas forças militares ou capitães-do-mato contratados, já que as informações coletadas em documentos geralmente provêm daqueles territórios que foram invadidos por forças repressoras (SILVA, 2000, p. 271).

A ressalva é importante porque retira legitimidade das argumentações jurídicas que se baseiam na suposição de que os quilombos no Brasil teriam sido apenas aqueles registrados oficialmente, reprimidos e destruídos pela administração colonial, como um fenômeno social que existiu no passado sob controle estrito e absoluto das autoridades coloniais e imperiais; essa suposição, todavia, cai por terra não apenas com base nos estudos históricos mais recentes, como também ao se constatar a existência, atualmente, de comunidades que afirmam descenderem de quilombos, contrariando os supostos critérios definitivos de verdade da historiografia tradicional, a partir de seu confronto com a história oral preservada pelos quilombolas, que têm contribuído para suprir as lacunas da documentação oficial e até mesmo alterar as interpretações que se acreditavam definitivas (SILVA, 2000, p. 272).

Como conclusão, o artigo expõe que o campo em torno dos quilombos é uma categoria jurídica em disputa e, dessa forma, sujeito às configurações das relações de poder, sendo necessário se conferir aos sujeitos quilombolas meios para que possam disputar esse campo com condições de igualdade mínimas, haja vista o histórico de violações aos seus direitos no passado e no presente. A metodologia consistiu na revisão crítica de literatura.

Mas, afinal, o que foram os quilombos para além de seu conceito jurídico, exposto nesta introdução, e qual a contribuição deles para o Direito Constitucional?

  1. Insurgência ao sistema jurídico: contraponto à escravização

    Antes de abordar o quilombo, é necessário relatar que o escravismo delineou o Brasil, país fortemente estruturado nas relações decorrentes da escravidão e cujos efeitos o sistema jurídico pouco enfrentou. O Brasil experimentou a formação escravista mais importante no Novo Mundo, pois nenhum outro país teve sua História tão modelada e condicionada pelo escravismo, em todos os aspectos, econômico, social e cultural, podendo-se dizer que a escravidão esboçou o perfil histórico do Brasil e produziu a matriz da sua configuração social: passados 130 anos da abolição, conserva toda a sua validez a observação de Nabuco (2011) de que a escravidão ainda continuaria por muito tempo uma característica nacional do Brasil (FREITAS, 1982, p. 11).

    No entanto, a escravização produziu importante contraponto: os quilombos, pelos quais se pode inovar a respeito da reflexão constitucional sobre os direitos à liberdade e à igualdade. Para Edison Carneiro (2011, p. XXXV), o recurso mais utilizado pelos escravizados, no Brasil, para escapar ao cativeiro foi à fuga para o mato, de que resultaram os quilombos, os quais teriam tido um momento determinado e o desejo de fuga era certamente geral, mas o estímulo à fuga vinha do relaxamento da vigilância dos senhores, causado pela decadência econômica. De acordo com Stuart B. Schwartz (4) (2001, p. 49),

    A resistência dos escravos e, em especial, a formação dos quilombos são atividades em que a iniciativa dos escravos é mais óbvia e, assim, continua a interessar os historiadores, bem como aqueles interessados nas comunidades do Brasil contemporâneo proveniente do assentamento de fugitivos. Todavia, costuma-se dizer que, em geral, as fontes históricas a respeito dos quilombos são raras, quando não indiretas, pois, nas senzalas, "as coisas" costumavam ser clandestinas e, nos quilombos, os registros aparecem em fontes produzidas pela repressão (GOMES, 2011, p. 64).

    A investigação histórica destas comunidades negras apresenta enormes e complexas dificuldades, pois não se dispõe de fontes diretas dos próprios quilombolas, que nada deixaram escrito, restando apenas as informações de seus inimigos (FREITAS, 1982, p. 38). Apesar disso, a partir de estudos das Ciências Sociais, principalmente da contribuição da História e da Antropologia, pode-se saber a respeito da sua formação e, por consequência, suas implicações jurídicas passadas e presentes, inclusive compreender que não se tratou de fenômeno restrito às Américas, nem às áreas rurais (5) (DE LA SERNA, 2010, p. 89).

    A noção de quilombo antecede a sua disciplina jurídica no Brasil, tendo vindo da África e, ainda nos períodos colonial e imperial, sofrido as necessárias ressignificações. Na África (6), a palavra teria a conotação de associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas...

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