A contraposição ao conceito de soberania de Hans Kelsen como elemento constitutivo do decisionismo jurídico de Carl Schmitt

AutorPaulo Sávio Peixoto Maia
CargoMestre em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)
Páginas113-131
A contraposição ao conceito de soberania
de Hans Kelsen como elemento constitutivo
do decisionismo jurídico de Carl Schmitt
Paulo Sávio Peixoto Maia*
1. Introdução
Entre os capítulos mais estimulantes da história da Teoria da Consti-
tuição f‌igura, decididamente, a polêmica travada entre Hans Kelsen e Carl
Schmitt, em 1931, acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição.
Uma polêmica que conta com escritos, de parte a parte, que subsumem
de forma impressionante os problemas e impasses institucionais de seu
tempo1. Também a isso se deve sua difusão universal. Mas para além da
questão de “engenharia constitucional” de se saber se um tribunal cons-
titucional ou o chefe do poder executivo deve guardar a Constituição, no
espelho da polêmica Kelsen-Schmitt podem ser vislumbradas questões que
continuam prementes para o pensamento constitucional contemporâneo:
a contraposição entre direitos fundamentais e governabilidade ou mesmo
a tensão entre jurisdição constitucional e democracia podem ser citados
como exemplos. Em sentido inverso, alguns conceitos também podem se
revelar como uma chave útil para compreender aspectos inexplorados da
polêmica. É o caso do conceito de soberania.
* Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB);
Professor na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), onde coordena sua Divisão de Pós-Graduação Stricto
Sensu; Professor-conferencista na Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC – TJ/CE); e
Advogado. E-mail: paulosaviomaia@yahoo.com.br.
1 FIORAVANTI, 2001, p. 606.
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Surgida a partir do século XVII, a noção de soberania tinha seu uso
ligado à procura por uma maior autonomia do nascente Estado moderno
frente a poderes universalistas, como a Igreja e o Império2. Para tanto, a
estratégia da publicística européia foi a de enfatizar a “naturalidade” do
princípio da igualdade soberana entre Estados necessariamente havidos
como iguais (par in parem non habet jurisdictionem – “os iguais não têm
jurisdição entre si”)3.
Coetâneos à soberania são os conceitos de razão de Estado (raison
d´État) e de ius eminens, que permitiam àquele que personif‌icava a sobera-
nia a faculdade de não cumprir o direito vigente ao argumento de proteger
o Estado4: o monarca que é sábio para se vincular sabe, também, o momen-
to certo de se desvincular, e assim conservar a boa ordem do reino5. Con-
quanto a doutrina das “leis fundamentais” já somasse esforços no sentido
de diminuir o matiz personalista dessa proteção da ordem jurídica6, a sua
efetiva suplantação teve que aguardar o advento da Constituição moderna,
na virada para o século XIX. Foi naquela quadra histórica que se iniciou
um movimento, tendo como base a Constituição, que, por um lado, re-
forçou a distinção entre direito e política e, por outro, possibilitou uma
comunicação entre tais âmbitos7. A Constituição moderna, assim, desloca
a questão da soberania de um plano personalístico para um âmbito institu-
cional. A Constituição é a soberana8.
Kelsen e Schmitt se defrontam com esse traço que conforma o direito
moderno. Kelsen tem uma noção normativista do direito, porquanto apli-
ca a metodologia neokantiana com a f‌inalidade de se construir um siste-
ma de conhecimento puro, sem nenhuma interferência metajurídica; para
2 Tal construção, que f‌igura como fundamento do direito internacional, é oriunda do tratado conhecido
como “A Paz da Westfália”, de 1648, e que iniciou o “processo de secularização” do Estado, que foi pro-
nunciado de modo mais def‌initivo com a def‌lagração da Revolução Francesa. Cf. MANNONI, 2003, p.
210-215; BÖCKENFÖRDE, 2000, pp. 101-118.
3 SCHMITT, 2006 [1950], p. 157.
4 LUHMANN, 1996, pp. 107-108.
5 PASSERIN D’ENTRÈVES, 1 967, pp. 69-78.
6 SEELAENDER, 200 6, pp. 197 e ss.
7 CORSI, 2001, p. 173.
8 O raciocínio aqui desenvolvido, com a brevidade que uma introdução requer, é válido para países que
possuem supremacia constitucional o que é bem mais que meramente um Estado-nação adotar uma Consti-
tuição escrita. Cf. CANOTILHO, 2002, pp. 87-100.
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