A construcao da cidadania indigena no Brasil e suas contribuicoes a Teoria Critica Racial/The construction of indigenous citizenship in Brazil and its contributions to the Critical Race Theory.

Autorde Freitas Figueiredo Rocha, Gabriela

Introdução

Os Estudos Críticos da Raça surgiram como campos acadêmicos e militantes de resistência que, dentro das Ciências Sociais e Aplicadas, trouxeram a questão racial para o cerne da produção de conhecimento e dos sistemas sociais e jurídico. A crítica à teoria jurídica liberal é radicalizada sob uma perspectiva que ressalta a imbricação dos aparatos de poder e da justiça não apenas ao sistema capitalista e à exploração moldada pela divisão global do trabalho, mas também à maneira como esse sistema se alimenta da exploração de corpos racializados e da perpetuação do racismo, em suas distintas configurações.

Dentre os diversos contributos deste campo de produção crítica aplicada aos estudos jurídicos está a desconstrução de uma visão universalizante dos sujeitos de direitos, neutra e abstrata. Em seu lugar, reforça que esta mesma visão sustenta a reprodução de sistemas sociojurídicos extremamente iníquos, onde os Estados perpetuam seu poder sob aparente legalidade e legitimidade, mesmo que uma cidadania efetiva seja garantida para poucos. Considerando, por exemplo, o cenário estadunidense, a crítica dos Race Legal Studies se dirige justamente aos resultados da expansão de direitos civis à população racializada, em que a aquisição de direitos e de igualdade perante a lei não garantiu a justiça racial (HARRIS, 2000; DELGADO, STEFANCIC, 2001).

No bojo dos Estudos Críticos da Raça desta academia surgem ainda outras linhas que tematizam a condição específica de diferentes grupos racializados, tais como a Tribal Crititical Race Theory (TribalCrit), a Latin Critical Race Theory (LatinCrit) e a Asian Critical Race Theory (AsianCrit). Segundo BrayBoy (2006), sobre os TribalCrit, "it's the liminal space that accounts for both the political/legal nature of relationship with the US government as American Indians and with our embodiment as racialized beings" (BRAYBOY, 2006: 427). Ou seja, tais estudos querem compreender como se articulam, de um lado, a reprodução do racismo como um sistema universalizante de violência e subordinação e, do outro, a negação das diferenças étnico-culturais, mediante a perpetuação do etnocídio pelo processo de colonização das línguas, histórias, saberes, cosmologias, modelos de sociedade e ocupação dos territórios que marcou a relação entre o moderno Estado nação e as nações por ela subjugadas.

Assim, um dos pontos dessa crítica é a importância de investigar o processo histórico que fundou os Estados nacionais, a noção de unidade entre população, nação e território e, enfim, de cidadania que lhes dá substância. Deve-se trazer à tona o silêncio da tradições jusfilosóficas ocidentais, seja como a face oculta, objetificada e subjugada da modernidade, seja como fratura que irrompe do projeto moderno-ocidental de nação, ao negar permanentemente a incorporação completa, mesmo quando se "acomoda" às categorias que o próprio poder colonial produziu. Tal silêncio ecoa dos espaços subjugados pela violência e pela ausência da ordem e da lei (os territórios coloniais, os campos de trabalho escravo ou servil, as prisões, os aldeamentos indígenas etc.), onde as populações racializadas foram descritas, catalogadas, dominadas e disciplinadas. A cidadania, para esses grupos, sua inclusão no moderno contrato social por meio de reformas legislativas constitucionais e institucionais significou muitas vezes o redirecionamento do racismo para outras dimensões da vida social, e não o seu fim. No Brasil, onde a igualdade civil é tida como um dado após o fim da escravidão--mesmo sendo o país que levou mais tempo a aboli-la--e onde a miscigenação é celebrada e estimulada, o racismo se sustenta por raízes profundas. O Direito, parte desse sistema, não é um regulador moral de uma realidade em que o racismo é exceção. Ao contrário, através dele, as elites coloniais fundadoras de uma unidade nacional em construção impuseram a supremacia branca e europeia sobre o "negro" e o "índio", categorias generalizantes, elas mesmas inventadas concomitantemente às demais invenções modernas.

Neste artigo, o objetivo perseguido é realizar uma reflexão crítica sobre a construção da cidadania indígena no Brasil, o que implica reconhecer a função que o Direito tem exercido, cultural e estruturalmente, de consolidar e manter uma dominação branca. Esta análise tem como ponto de partida um diálogo com os Estudos Críticos étnico-raciais, integrado a uma abordagem histórica e antropológica sobre as especificidades de nossa formação sociocultural. Intenta-se aqui contrapor uma leitura romantizada e superficial acerca da relação que o Estado Brasileiro mantém com povos originários, como se a colonização houvesse constituído um evento episódico em uma história marcada pela integração harmônica e tolerante da faceta mais exótica da identidade nacional. Ao contrário do que se apregoa no imaginário nacional, de que os índios estiveram protegidos pelo Estado Brasileiro como guardiões das fronteiras, das florestas e do mito fundador da nacionalidade, a história e o presente da questão indígena no Brasil são marcados pelo permanente impulso, por parte da nação brasileira, de incorporação das diferentes sociedades auto-organizadas, por meio de estratégias que incluíram a escravização, a servidão e a miscigenação violenta, cujo objetivo era tornar povos até então autônomos, com governos próprios e diversos, em cidadãos brasileiros subordinados e racializados. De outro lado, a luta e a resistência indígenas fizeram com que os povos sobrevivessem e se multiplicassem--contrariando a propalada extinção como destino inevitável--ao subverterem o modelo de cidadania que continha implícito o pressuposto de "deixar de ser índio".

Como o Estado imaginou, compreendeu e categorizou a diferença indígena nos diferentes momentos históricos, criando um sujeito "indígena" atemporal, artificial e homogêneo, que nunca condisse com a realidade? Qual o impacto dos diferentes modelos de integração adotados pelo Estado brasileiro na configuração dessa cidadania? Além de responder a essas questões nas primeiras seções, o artigo, na terceira parte, se dedicará a discutir a cidadania indígena no presente, a partir da agência dos coletivos e das estratégias adotadas para pautarem as suas diferenças frente à sociedade nacional. O objetivo é sugerir contribuições ao pensamento crítico racial, no esforço de pensar como raça e etnicidade se entrelaçam no processo de superação da matriz colonial do Estado brasileiro.

1 A invenção do índio para uma nação miscigenada

A partir de meados do século XIX, no pós independência, o Brasil inventava a si mesmo enquanto nação autônoma e soberana, a fim de determinar a imagem a ser vendida para fora, perante as outras nações, e o imaginário que garantiria a coesão social interna, a integridade que as elites se esforçaram por manter. Tratava-se de um período de consolidação das instituições legitimamente brasileiras, bem como da construção de imaginários e mitos fundadores. Destacava-se aí a maneira diferenciada como as populações racializadas seriam inseridas nesse imaginário, processo que caminhava passo a passo com a determinação do horizonte de cidadania que lhes cabia. A era do Império foi marcada pelo fomento, na literatura e nas artes, de uma imagem mítica e romântica do índio, o bom selvagem:

Por oposição aos africanos, que lembravam a vergonhosa instituição escravocrata, o indígena permitia selecionar uma origem mítica e estetizada. A natureza brasileira também cumpria função paralela: se não tínhamos castelos medievais ou igrejas renascentistas, possuímos o maior dos rios, a mais bela vegetação. Entre palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais, aparecia representado o monarca, o Estado e a nação, destacando-se a exuberância de uma natureza sem igual. (...) Os índios do romantismo nunca foram tão brancos, e o monarca e a cultura brasileira se tornaram mais tropicais. Diante da rejeição ao negro escravo, e mesmo aos primeiros colonizadores, o indígena restava como legítimo representante da nação. (...) Como um bom selvagem tropical, o indígena romântico permitiu à jovem nação fazer as pazes com um passado honroso anúncio de um futuro promissor (SCHWARCZ, STARLING, 2015: 288-289). Era esse o indianismo, um conjunto de representações sobre a origem do Brasil na composição harmônica deste binômio--branco e índio--às custas, obviamente, do sacrifício deste último em nome da modernização e do progresso, que vinham da Europa. Ou seja, a nação tropical, cuja especificidade se expressava nesta condição de mestiça, aberta e acolhedora à diferença, buscava afirmar-se autêntica e promissora, a fim de ser validada pelas nações europeias, com quem queria perpetuar as mesmas relações comerciais e econômicas.

Dois elementos são relevantes para compreendermos esse momento. De um lado, o fato de que esses ideólogos da nação brasileira não vão buscar o mito fundador nas sociedades indígenas então existentes. Buscam-no no "índio", no singular. Na condição de mito, narrativa, construção ideológica de uma categoria, ele prescinde de correspondência com a realidade, para a produção de efeitos em uma comunidade nacional imaginada, ou seja, situada fora de um tempo e um de espaço concretos (ANDERSON, 1991). Contudo, enquanto há nações em que esses mitos refletem elementos socializadores pré-existentes, que fazem com que a representação externa daquela identidade tenha vínculo com o que internamente é produzido como significativo, aqui é evidente o seu caráter colonial, onde o indígena, suposto representante desse passado originário, é privado de qualquer agência ou participação na elaboração de sentidos compartilhados. O "índio", cujo nome já exprime uma série de preconcepções forjadas ao longo dos séculos de colonização, não tem qualquer correspondência com as sociedades concretas que então existiam, pois estas seguiam sendo dizimadas ou meramente ignoradas pelas instituições. Puro ou selvagem, ele é introduzido na história nacional como a...

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