Construindo a partir de Marx: reflexões sobre "raça", gênero e classe.

AutorBannerji, Himani

Eu sei que não estou sozinha. Deve haver centenas de outras mulheres, talvez milhares, que se sentem como eu. Pode haver centenas de homens que queiram que as mesmas mudanças drásticas aconteçam. Mas como se relacionar com eles? Como podemos interligar nossa própria luta e objetivos com essa miríade de pessoas hipotéticas, pessoas que estão completamente escondidas ou camufladas por estereótipos e/ou generalidades de "plataforma" como qualquer novo movimento que parece surgir? Eu não sei. Não gosto dessa sensação de estar sozinha quando está claro que será preciso multidões trabalhando juntas ao redor do mundo para que uma mudança radical e positiva seja imposta a esse hediondo status quo que desprezo em todo o seu poder avassalador (Jordan 1989, p. 115). Introdução

Atualmente, é convencional nos círculos acadêmicos e políticos falar de "raça" ao mesmo tempo em que se fala de gênero e classe. É mais ou menos reconhecido que a "raça" pode ser combinada com outras relações sociais de poder e que elas poderiam mediar e intensificar umas às outras (1). Essa combinação de "raça", gênero e classe é frequentemente expressa através do conceito de "interseccionalidade", no qual três vertentes particulares de relações sociais e práticas ideológicas de diferença e poder são interpretadas como que surgindo em seu terreno social específico e, em seguida, cruzando-se "inter-seccionalmente" ou de forma agregada (2). Diferentes problemas sociais são reunidos para que se crie, a partir desta reunião, um momento de experiência social.

No entanto, quando se fala de experiência, tanto os não-brancos como os brancos que vivem no Canadá e no Ocidente sabem que essa experiência social, ao ser vivida, não é uma questão de interseccionalidade. Sua sensação de estar no mundo, texturizada através de inúmeras relações sociais e formas culturais, é vivida ou sentida ou percebida em conjunto e ao mesmo tempo. A presença de uma mulher não-branca da classe trabalhadora (negra, sul-asiática, chinesa, etc.) em seu ambiente habitual racializado não é divisível, não pode ser separada e seriada. Sua negritude, seu sexo e sua personalidade neutra em termos de gênero enquanto trabalhadora, se misturam simultânea e instantaneamente em algo como uma identidade (3). Essa identificação está tanto nos olhos do observador como no próprio sentido de presença social que essa trabalhadora tem sobre si mesma, capturado por aquele olhar. O mesmo se aplica a uma mulher branca e, no entanto, quando somos confrontadas com esta questão do "ser" e da experiência, temos dificuldade de teorizá-los nos termos de uma ontologia social. Qual poderia ser a razão desta inadequação de conceptualização que não consegue captar tal experiencialidade formativa? Se ela é vivida, então como pode ser pensada e como podemos superar nossas deficiências conceituais? Minha intenção aqui é sugerir uma possível teorização que possa abordar essas questões, ou pelo menos compreender as razões pelas quais precisamos questioná-las em primeiro lugar. Não se trata de simplesmente responder a um desafio teórico, mas também a um desafio político. Esta é uma peça básica no quebra-cabeça da construção da democracia social.

Para que a democracia seja mais do que uma mera forma constituída por rituais políticos que apenas servem para enraizar o domínio do capital e lançar água benta sobre as desigualdades sociais existentes, ela deve ter um conteúdo popular e realmente participativo. Esse conteúdo deve conter reivindicações sociais e culturais concentradas em movimentos sociais e organizações que trabalham através de processos políticos visando a obtenção de direitos populares em todos os níveis. Tal política precisa de um entendimento social que conceba as formações sociais como fenômenos complexos, contraditórios e inclusivos de interações sociais. Não basta que seja um simples exercício aritmético de adição ou intersecção de "raça", gênero e classe de forma estratificada. Essa política não pode apresentar a "raça" como fenômeno cultural, e o gênero e a classe como fenômenos sociais e econômicos. Ela precisa superar a fragmentação completa do social em tais aspectos elementares de sua composição. Por exemplo, não se pode dizer que um sindicato seja uma organização de luta de classes se ele só pensa a classe em termos econômicos, sem ampliar o conceito de classe para incluir "raça" e gênero em sua definição formativa intrínseca. Além disso, ele tem que tornar sua compreensão sobre a classe aplicável sobre essa mesma classe, enquanto base socialmente composta (4).

Fora dos sindicatos--que são explicitamente organizações de "classe"--, a prática usual nos movimentos de justiça social atuais é adotar o que se chama de política de "coalizão", sem discriminar as plataformas sobre as quais essas organizações foram constituídas (5). Este ativismo de coalizão não é apenas uma questão tática, mas reflete a mesma lógica agregadora pluralista de compreensão do social. Tanto organizações que se baseiam na classe quanto organizações que não se baseiam nesta se unem por conta do seu interesse compartilhado em determinadas questões. Mas nos chamados "novos movimentos sociais", as próprias questões de classe e capital são consideradas desnecessárias, se é que são de alguma forma consideradas (6). Assim, as demandas populares em termos de gênero, "raça", sexualidade, identidade, etc., são formuladas primordialmente como exteriores à classe e ao capital, e em termos culturais. Nessa estrutura política, o "antirracismo" se torna uma questão de multiculturalismo e etnicidade, uma vez que os aspectos socialmente relacionais da racialização incluídos no "antirracismo" são convertidos em uma demanda cultural. Não é de surpreender que, nos últimos tempos, tenha havido um forte declínio de trabalhos sobre "raça" que combinem senso comum hegemônico/cultural com o funcionamento da classe e do Estado (7). A virada para o pós-modernismo e o afastamento do marxismo e da análise de classe resultou na crescente valorização das normas e formas culturais e transformou as teorias do discurso em veículos para a política "radical". Se no passado tivemos que lidar com o economicismo e o reducionismo de classe dos marxistas positivistas, agora a nossa batalha é contra o "reducionismo cultural". Nenhuma destas leituras da ontologia social nos permite fazer jus à política pela justiça social. Nossa jornada teórica deve começar em outro lugar para chegar a outro destino.

  1. Teorizando o social

    A teorização e a política que sugiro não são exercícios de abstração. Elas não se furtam a pensar ou a se organizar em torno de questões específicas relacionadas à economia, à cultura ou à política. Elas podem ser altamente específicas ou locais quanto ao seu escopo--sobre bairros ou pessoas sem-teto em Toronto, por exemplo--ou falar de problemas culturais. Mas usando estes diferentes pontos de entrada no social, elas têm de analisar e formular as suas questões em termos de problemáticas políticas que mostrem como estas questões particulares ou locais só surgem em um contexto mais amplo ou extralocal de relações socioeconômicas e culturais. Se elas são questões "específicas", temos de perceber que é porque são "específicas" de um conjunto geral, maior, de relações sociais, estruturais e institucionais (8). Pode, por exemplo, o tipo de privação do acesso à moradia vivido em Toronto ser possível fora da forma como o desenvolvimento econômico e social capitalista tem ocorrido no Canadá como um todo? Para corrigir os erros neste caso, é preciso pensar e investigar para além da situação imediata; é preciso ir acima e por detrás dela. Também não adiantaria pensar na "pobreza" como uma questão ou um problema por si só (para ser então acrescentada à "raça", classe ou gênero), ou concebê-la como sendo exterior ao capital.

    Apesar dos frequentes discursos rasos sobre teorização social reflexiva ou mesmo de alguns excelentes trabalhos, especialmente de historiadores, sobre classe, escravidão, colonialismo e imperialismo, precisamos nos aventurar em uma leitura mais complexa do social, onde cada aspecto ou momento deste pode ser apresentado como refletindo outros, onde cada pedacinho dele contém o macrocosmo em seu microcosmo--como disse Blake, "o mundo em um grão de areia". O que temos ao invés disso é uma próspera indústria teórica que rompe a integridade do social e orgulhosamente valoriza os "fragmentos", preferindo apresentá-los em uma incoerência não-relacional, ou adicioná-los sempre que necessário. De acordo com tais abordagens, como dito anteriormente, o social constitui uma ordenação das partes reguladoras--a velha aritmética utilitarista--e, propriamente falando, é inconcebível. Marxistas e neomarxistas também sucumbiram a um debate incessante sobre modernismo e pós-modernismo, permitindo que a categoria estética e moral do "moderno" os distraísse.

    Procurando ultrapassar os termos desse debate, gostaria de voltar à própria formulação de Marx do "social"--do ontológico ou do existencial--em termos ou conceitos diferentes. Aqui, parto do princípio de que o "social" significa uma complexa formação socioeconômica e cultural, trazida à vida através de uma miríade de relações, organizações e instituições sociais e históricas finitas e específicas. Envolve agentes humanos vivos e conscientes e o que Marx chamou de sua "atividade prática, humana-sensível" (MARX; ENGELS, 2007, p. 534). (9) Aqui, cultura e sociedade não se encontram numa relação mecânica de base econômica e de superestrutura cultural. Todas as atividades do e no social são relacionais e são mediadas e articuladas com as suas formas expressivas e incorporadas de consciência. Aqui, práticas significantes e comunicativas são momentos intrínsecos do ser social. Usando tal formulação do social, minha principal preocupação é realizar uma crítica marxista do que a "raça" significa para a "classe" e o gênero em particular. Em outras palavras, estou tentando socializar a noção de...

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