A consulta aos povos indígenas e o equilíbrio do poder simbólico entre as perspectivas envolvidas/Consultation with indigenous peoples and the balance of symbolic power between the perspectives involved.

AutorNascimento, Laura Fernanda Melo

1 Introdução

O presente artigo é fruto da disciplina Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais na Amazônia: constitucionalismo latino-americano e teorias pós-coloniais ofertada no Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Amazonas, com área de concentração em Constitucionalismo e Direitos na Amazônia.

Uma das atividades realizadas na disciplina tratava da compreensão das garantias conferidas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, seguida da análise da trajetória histórica, social e política dos povos indígenas.

Durante o estudo, foi possível constatar o problema da dificuldade de implementação das garantias já positivadas, e levantar como hipótese a questão da mudança da condição de invisibilidade social, jurídica e política desses povos, para a condição de sujeito ativo, participante e cuja opinião deve ser tomada em consideração. Para averiguar a hipótese levantada, o presente artigo restringiu seu âmbito de investigação ao direito de consulta.

O objetivo do artigo, portanto, é demonstrar que na consulta aos povos indígenas deve-se considerar que existe uma situação histórica, social e política que estabelece, desde o seu início, um desequilíbrio na participação entre as partes, que precisa ser minorado.

Para embasar o argumento desse desequilíbrio prévio, utilizou-se o referencial teórico de Pierre Bourdieu sobre a diferença de poder simbólico existente na expressão de um pensamento dominado frente a um dominante e, como alternativa a minorar tal desequilíbrio, utilizou-se o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, como forma de ver o direito de consulta como um mecanismo de descolonização e de maior consideração do ponto de vista indígena.

A pesquisa se justifica jurídica e socialmente, pela importância da Convenção 169 da OIT como norma positivada e protetiva de direitos indígenas e pela necessidade de se pensar em mecanismos para reforçá-la. Precedida da Constituição Federal de 1988 (1), é a norma mais importante de proteção dos direitos de povos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro (GRABNER, 2015, p. 16), internalizada por meio da promulgação do Decreto n. 5.051/2004.

Algumas foram as contribuições desse marco protetivo à nova ordem constitucional, tendo o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, se tornado um instrumento que visa não só a resguardar o social e a territorialidade de povos indígenas (MARÉS, 2019, p. 22), mas também a sua condição de sujeitos, promovendo o direito a ser e a opinar, a ser consultado.

Para sua implementação, é necessário um procedimento que respeite a instituição representativa de cada povo (MARÉS, 2019, p. 23, 30-31), e também que se tenha em conta que não se trata de um acordo ou ato bilateral de duas partes com igual força, mas do direito de uma parte (os povos indígenas), e do dever da outra parte, inclusive quando essa segunda parte é o Estado (MARÉS, 2019, p. 33).

Quando não se tem a preocupação em ouvir as populações indígenas envolvidas, há uma relação em que "de um lado, parecem estar os 'civilizados' e, de outro, os 'bárbaros' ou 'selvagens'" (BALDI, 2008, p. 1). A questão indígena, então, acaba por estar inserida em críticas que "reatualizam o imaginário político-social que ainda associa índio a incapacidade civil, cooptação, manipulação e necessidade de tutela, num estado de 'menoridade', para qual somente podem ser 'objetos de estudo', nunca 'sujeitos de direito'" (BALDI, 2008, p.1).

Nesse cenário, além da correta implementação do direito de consulta, e respeito aos seus requisitos essenciais, deve-se tomar em consideração também como a arena de comunicação entre as partes é desigual e permeada por um campo político e uma estrutura de anos de dominação e distância com a organização social hegemônica (MARÉS, 2019, p. 45).

Quanto à metodologia adotada, a pesquisa é bibliográfica e os métodos foram o dedutivo e o materialista histórico-dialético, visto que se pretende comprovar a hipótese levantada por meio de uma análise pelo contexto histórico, social e político do tema abordado.

O raciocínio dedutivo foi inicialmente utilizado para aferir a relação lógica entre as premissas da pesquisa (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009). Seguiu-se o seguinte silogismo: os povos indígenas foram historicamente invisibilizados e enfrentam dificuldades no respeito a seu direito de consulta, compreendido como diálogo e participação (premissa maior); para exercício efetivo de participação de grupos dominados, há necessidade de se atentar para para a existência de desequilíbrio das relações de poder na arena política (premissa menor); logo, as dificuldades de implementação do direito de consulta têm relação com a modificação da condição de invisibilidade para a condição de sujeito ativo participante (conclusão silogística adotada).

A opção pelo método materialista, por sua vez, deu-se como alternativa à perspectiva tradicional jurídica positivista, visando a aproximar o objeto teórico estudado (direito à consulta prévia) da sua esfera do real, e a diminuir a distância entre o abstrato e o concreto na produção científica (DE OLIVEIRA; BELLO, 2015).

Apesar de o método materialista da teoria marxiana não ter sido cunhada para o Direito, pode ser utilizado enquanto método de perspectiva crítica, na área da epistemologia e da pesquisa jurídica, por meio do qual se vai além do formalismo jurídico e se apreende o objeto estudado de forma dinâmica, à luz da realidade concreta, histórica e dialeticamente construída no seu passado, como um processo e como um produto, o qual, no seu tempo presente, ainda não está terminantemente construído, admitindo novas proposições para transformação da realidade (FALBO, 2015; KELLER, 2015).

Além disso, ainda que a pesquisa perpasse pela compreensão da colonialidade e da descolonização do pensamento, admite-se a compatibilidade da teoria decolonial com a teoria marxiana, quando (i) a categoria de análise crítica não se limitar à classe e ao trabalho, como é o caso da categoria subalternidade, já presente em estudos de Gramsci e Mariategui, e (ii) quando a realidade é adstrita ao contexto latino-americano, como desenvolvido pelos teóricos decoloniais Dussel e Quijano (NASCIMENTO, 2017).

Essa compatibilidade, portanto, decorre da adaptação da metodologia marxiana para as ciências sociais, compreendida como teoria universal de método e de epistemologia crítica, afastando-se da análise economicista eurocentrada (FALBO, 2013; NASCIMENTO, 2017).

Para realização do intento, o trabalho foi dividido em três partes. Na primeira parte, adotou-se uma abordagem histórica e descritiva sobre o processo de conquista e como foi permeado pela negativa do ser-indígena, pela invisibilização dos povos. Na segunda, apresentou-se, descritivamente, o direito à consulta, seu histórico e finalidade, a fim de demonstrar como se constitui numa guinada de tratamento conferido a esses povos, que passam, então, a serem obrigatoriamente considerados e ouvidos.

Na terceira parte, foram apresentados referenciais teóricos escolhidos para fundamentar a pesquisa, sendo o de Pierre Bourdieu o referente ao capital simbólico presente nas visões de mundo do pensamento dominante e do pensamento dominado; e o de Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio que retrata a existência de dois pontos de vistas ontológicos diversos entre os mundos indígena e não-indígena.

Ao final, pode-se concluir que se existe uma pluralidade de pontos de vista no procedimento de consulta, é necessário considerar a proporção do poder simbólico existente entre os polos de expressão e que a participação indígena deve ser reequilibrada, a fim de dar uma adequada e descolonizante valorização do seu ponto de vista.

2 A invisibilidade do "outro" indígena

A primeira premissa de que parte o presente trabalho é de que houve um processo de conquista--e não de descobrimento--de terras em que habitavam povos indígenas na América (NOGUEIRA, 2016, p. 59), marcado por uma série de injustiças e violências institucionalizadas cujo fator comum está no ocultamento e na invisibilização desses povos (DANTAS, 2014, p. 344).

O processo de conquista tornou os novos mundos e pessoas dominadas em objetos, encobertos num papel denominado "Outro" (DUSSEL, 1993, p. 36). Após o reconhecimento do território de conquista, o primeiro passo da dominação foi a pacificação das pessoas que nele habitavam (DUSSEL, 1993, p. 43), ou seja, um processo de pacificação desse Outro.

Esse processo de pacificação surgiu com base em estratégia militar, prática violenta em que o Outro era "sujeitado, subsumido, alienado a se incorporar à Totalidade dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como 'encomendado' (...)" (DUSSEL, 1993, p. 43-44).

Não houve, portanto, um simples encontro entre culturas diversas, a que Dussel denominou "comunidade argumentativa", na qual "os membros fossem respeitados como pessoas iguais -, mas era uma relação assimétrica, onde o 'mundo do Outro' é excluído de toda racionalidade e validade religiosa possível" (1993, p. 64-65).

Essa dominação e violência foram ocultadas durante a conquista, ficando o sofrimento causado ao Outro, justificado, por muito tempo, pela racionalidade moderna que pretendia "salvá-los" de ser uma civilização com inferioridade em seus instrumentos, tecnologia, estrutura política ou econômica e exercício de subjetividade (DUSSEL, 1993, p. 77-78).

Mas também se ocultou que essa culpabilidade que carregavam, de serem povos com "inferioridade" ou "imaturidade", também era um discurso falso da modernidade (DUSSEL, 1993, p. 82). Atribuiu-se a culpa aos povos habitantes do Novo Mundo sem considerar que, naquela época, já havia construções teóricas (a exemplo da Escola Ibérica da Paz (2)), que eram contrárias ao uso da força e que reconheciam os povos indígenas como "autênticas Nações soberanas, política e juridicamente iguais aos demais reinos cristãos europeus" (CALAFATE; LOUREIRO, 2020, p. 57).

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