O Consumidor nas Relações Jurídicas com as Operadoras de Planos Privados de Assistência à Saúde

AutorRoberto Grassi Neto
CargoLivre-Docente, Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
Páginas41-72

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1. Evolução legislativa no âmbito da saúde suplementar no Brasil
1.1. Antecedentes

A questão da saúde, embora seja uma das mais antigas em nosso país, ganhou regramento oicial pela primeira vez apenas no início do século XX, quando foi editado o Decreto Legislativo 4.682, de 24 de janeiro de 1923, denominado Lei Eloy Chaves, implantando a previdência social no país. Foi por mencionado texto legal que se procedeu à criação das denominadas "caixas de aposentadorias e pensões" para os empregados das empresas ferroviárias, que passaram a ter direito à aposentadoria por invalidez, à aposentadoria por tempo de contribuição (aposentadoria ordinária), à pensão por morte e à assistência médica. Conquanto restrita em seu âmbito de aplicação, a Lei Eloy Chaves teve suma importância, não apenas por possibilitar o surgimento de incontáveis caixas de aposentadoria e pensões, mas também por ter despertado a atenção do legislador para a necessidade de disciplinar o setor previdenciário.

A atividade dos planos de saúde, por sua vez, teve origem na década de 1960, no Estado de São Paulo, como consequência indireta da industrialização, uma vez que o modelo de saúde pública havia se demonstrado insuiciente para atender às necessidades da população. A proposta inicial era extremamente simples e, apesar de ser inovadora no Brasil, lastrava-se em modelo já adotado nos EUA desde a década de 1930. Médicos se reuniam nas então denominadas empresas de medicina de grupo, para prestar cobertura através de pagamento previamente realizado. O êxito com o qual a empreitada foi coroada abriu caminho, então, para o surgimento das cooperativas de serviços médicos, das empresas de autogestão, das seguradoras e das entidades ilantrópicas1. Em julho de 2009, a ANS permitiu, ainda, o surgimento de nova modalidade, correspondente às empresas administradoras de benefícios médicos2, pessoas jurídicas que, dentre outras atividades, propõem a contratação de plano coletivo na condição de estipulante ou que prestam serviços para outras pessoas jurídicas contratantes de planos privados de assistência à saúde de natureza coletiva.

Nas décadas seguintes, em especial nas de 1980 e 1990, graças à fragilidade do modelo estatal, conjugada à grande facilidade que as operadoras encontravam para oferecer planos de saúde no mercado, o sistema privado de saúde acabou alcançando grande desenvolvimento no Brasil. Os altos índices inlacionários, por sua vez, asseguravam a possibilidade de serem oferecidos planos com valores de mensalidade extremamente baixos, uma vez que as despesas das operadoras também seriam reduzidas em razão da desvalorização da moeda.

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Com grande propriedade, Freire3observa terem sido, paradoxalmente, esses mesmos fatores os responsáveis pela grande crise que se instalou à época. Em primeiro lugar, a atividade das operadoras perdera seu caráter secundário na área da saúde, para assumir papel essencial, tamanha era a ineiciência do setor público; além disso, inúmeras cláusulas reputadas como abusivas passaram a ser inseridas nos contratos. Contribuiu, ainda, para o quadro desfavorável o fato de a inlação ter chegado a patamares tão elevados a ponto de ensejar a necessidade de correção diária de valores. Mesmo as empresas que haviam se adaptado a tal situação acabaram recebendo novo golpe, agora em razão da estabilização da moeda após a implantação do Plano Real, em 1994. Aquelas que haviam perdido a noção de preço justo e adequado acabaram, com efeito, sendo levadas à quebra com o término do período inlacionário.

Atualmente a atuação das operadoras de plano de saúde encontra seu fundamento legal na CF de 1988, na Lei 9.656/98 (que regula os planos de saúde), na Lei 9.961/00 (que cria e dispõe sobre a ANS), nas resoluções do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) e da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar. Cumpre igualmente ressaltar que o cabimento ou não da aplicação do CDC aos contratos de plano de saúde é questão das mais controvertidas e vem sendo objeto de intensos debates na doutrina e na jurisprudência.

1.2. A proteção ao consumidor e o direito à saúde na Constituição Federal de 1988 e no CDC

A legislação brasileira disciplinando as relações de consumo está consubstanciada, basicamente, na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o denominado Código de Defesa do Consumidor, que "dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências".

Ao contrário do ocorrido com outros tantos diplomas existentes na legislação comparada - como o Code de la Consommation francês, compilação de textos legais procedida por determinação da então ministra do consumo, Mme. Lalumière -, o legislador brasileiro empreendeu sua obra no âmbito do direito do consumidor cumprindo vontade manifestada pela Assembleia Nacional Constituinte, no sentido de ter sido feito trabalho efetivo de codiicação que dispusesse por completo sobre a matéria.

Ocorre que, tratando da proteção ao consumidor em diferentes dispositivos, a Constituição Federal acabou por dispor sobre a matéria sob enfoques diversos.

O inciso XXXII do art. 5° do texto de 1988, por exemplo, eleva tal proteção à qualidade de direito fundamental4.

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A "defesa do consumidor" veio novamente mencionada dentre os princípios gerais da atividade econômica, constantes do capítulo I, do título VII, que trata da ordem econômica e inanceira5. Com efeito, o art. 170 da CF/88 reza deve ser observada, dentre outros princípios, a defesa do consumidor na organização da ordem econômica, objetivando assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Mencionada "defesa do consumidor" deve, pois, ser considerada princípio fundamental6expresso7na Constituição. Esse caráter "fundamental" advém, por um lado, da circunstância de não estar lastrado em princípios ou normas de caráter axiológico que lhe sejam superiores; por outro, do fato de, ao mesmo tempo, direcionar, inspirar e servir de fundamento para as normas que integram o sistema.

O tema foi abordado ainda uma vez mais, por ocasião da elaboração das disposições transitórias, tendo o Congresso Nacional estabelecido no art. 48 do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias) prazo de 120 dias, contados a partir da promulgação da Constituição, para a elaboração de um Código de Defesa do Consumidor8.

Materializado na Lei 8.078/90 e regulamentado pelo Decreto 2.181/97, o Código de Defesa do Consumidor nasceu, assim, com matriz constitucional, tendo sido o primeiro regramento especíico do mercado de consumo no Brasil.

Consoante seu art. 1°, o CDC estabeleceu normas de ordem pública e interesse social, cujo objetivo primordial era a proteção e a defesa do consumidor, e é reputado pela doutrina como sendo um entrelaçado normativo-principiológico lastrado na Constituição Federal.

Anteriormente à sua edição, as questões concernentes às relações de consumo vinham regidas pelo Código Civil de 1916 e pelo Código Comercial de 1850, textos centrados na liberdade contratual e nos interesses do indivíduo. O advento do Código de Defesa do Consumidor correspondeu à mudança de paradigma no ordenamento jurídico infraconstitucional, do individual para o coletivo, que iria consolidar-se apenas doze anos depois, com o advento do CC de 2002.

O legislador do CDC determinou os conceitos de consumidor, de fornecedor, de produto e de serviço, deixando para a doutrina o conceito de relação de consumo.

Consumidor pode ser conceituado como sendo toda pessoa física ou jurídica que, na qualidade de destinatário inal, venha a adquirir ou a utilizar bens ou serviços dotados de valor econômico, sem o intuito de empregá-los quer na fabricação, na transformação ou na distribuição de bens, quer na prestação de serviços no âmbito de qualquer atividade empresarial ou proissional. A doutrina acabou, ainda, consolidando-se no sentido de dever tal conceito necessariamente associar a ideia de "destinatário inal" àquela de vulnerabilidade, consubstanciada no art. 4°, I, do

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CDC, pois a intenção do legislador teria sido de reputar consumidor tão somente aqueles destinatários inais de produto ou serviço que se apresentem mais frágeis.

Fornecedor, por sua vez, será toda pessoa física ou jurídica, de natureza pública ou privada, nacional ou estrangeira, que desenvolva atividade tipicamente proissional, de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos, ou que desempenhe atividade ofertada ao mercado de consumo, mediante remuneração direta ou indireta.

O art. 3°, § 3°, do CDC, por im, enuncia o conceito de serviço como sendo "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, inanceira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista".

O CDC, com supedâneo no já mencionado princípio fundamental de...

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