Os contenciosos na OMC como instrumento de abertura de mercados agrícolas - reflexão e provocação

AutorRenê Guilherme S. Medrado
Páginas201-225

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I -Introdução

Não resta dúvida acerca da importância do setor agrícola para a economia brasileira. Historicamente, vários Países têm devotado atenção a tal setor, levando diferentes interesses a se cruzarem em seu caminho de liberalização e regulamentação. As negociações relacionadas a tal tema encontram-se novamente em situação delicada. Os resultados da Quinta Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) mantida em Cancun, México, entre os dias 10 e 14 de setembro de 2003,1 bem denotam isso, embora o "acor-

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do-quadro" (Framework Agreemeni), firmado ao final de julho de 2004, represente um alento, resultando em um novo impulso às negociações.

Tais resultados bem denotam a dificuldade de os membros da OMC chegarem a um consenso (ou até mesmo a um ponto de partida consensual) em torno das negociações sobre agricultura. Parte dessa dificuldade advém dos resultados da Rodada Uruguai, em que os Países em desenvolvimento e menos desenvolvidos concordaram com a expansão dos temas-áreas do regime da OMC (serviços e propriedade intelectual, principalmente), como contrapartida à introdução de regras sobre o setor agrícola (tarifação, classificação de tipos de medidas de apoio doméstico, e estabelecimento de compromissos de redução de subsidios à exportação), além do aprimoramento do sistema de solução de controvérsias. Todavia, tais Países vêem tais resultados como insuficientes, por não permitirem acesso, tampouco ganho de competitividade adequados nos mercados agrícolas internacionais.2

Denota-se, portanto, que o desenvolvimento das negociações multilaterais, visto como um todo, encontra-se intrínsecamente ligado ao avanço das negociações agrícolas. A aproximação do prazo final das negociações da Rodada do Desenvolvimento Doha (janeiro de 2005), e a postura adotada por alguns Países em buscar a abertura de mercados por meio de canais bilaterais e/ou regionais contribuem ainda mais para o encrudescimento das negociações. Todavia, é do interesse do Brasil manter as negociações em andamento, em razão das implicações econômicas, sociais e políticas que giram em torno desse setor.

Nesse contexto, quer parecer que o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC (SSC) passa a ganhar importância, seja nos esforços diretos e indiretos de abertura de mercados, seja como fator de poder de barganha adicional nas frentes de negociação. Como possível efeito dessa lógica, verifica-se que o Brasil, nos últimos anos, intensificou a abertura de demandas, perante o SSC, envolvendo questões de alta relevância nas negociações sobre agricultura. Tais casos em que o Brasil é parte envolvem, por exemplo, o apoio conferido pelos Estados Unidos à sua indústria doméstica algodoeira, bem como os subsídios conferidos pela Comunidade Européia (CE) às suas exportações de açúcar, entre outras questões.3

Esses e potenciais casos futuros poderão causar o efeito de acirrar as negociações em andamento. O término do prazo da cláusula de "Devida Moderação" (ou Due Restrain), prevista no Artigo 13 do Acordo sobre Agricultura (AsA) - a chamada "Cláusula de Paz" - tende a surtir efeitos benéficos à posição negociai brasileira, por ampliar o espectro dos tipos de demandas, envolvendo o setor agrícola, que poderão ser requeridas perante o SSC.4

Este artigo procura ressaltar alguns elementos da estratégia contenciosa brasileira. Inicialmente, examinar-se-á o histórico do Brasil em demandas envolvendo o setor agrícola perante o SSC. O objetivo é identificar a postura contenciosa brasileira, passada e presente, perante a OMC (Capítulo II). Reflexamente, tal análise auxiliará também na identificação dos obstáculos mais evidentes erigidos contra as exportações agrícolas brasileiras, e no conhecimento de parte dos temas que já foram objeto de consideração pelo SSC nesse setor. O Capítulo III apresentará considera-

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ções a respeito da estrutura e características do SSC que auxiliam a compreensão da estratégia contenciosa brasileira, bem como alguns argumentos teóricos que a embasariam. O Capítulo IV conclui o artigo, com reflexões à guisa de conclusão a respeito da estratégia contenciosa brasileira, e breve menção acerca dos efeitos da expiração da "Cláusula de Paz" e das oportunidades que o término dessa cláusula pode eventualmente gerar.

II - Agricultura - O histórico de contenciosos brasileiros na OMC

O SSC6 já conta com mais de 300 demandas desde sua criação em 1995.7 O Brasil participou de 25 processos como parte efetiva e em outros dez como parte interessada (third-party). Dessa forma, o Brasil envolveu-se em mais de 13% de todas as disputas registradas no SSC. Dentre os 25 casos que envolvem o Brasil como demandante ou demandado, seis deles envolvem produtos agrícolas (ver Tabela abaixo), pesca e outros derivados. Em sete deles o Brasil atuou (ou está atuando) como demandante e, em dois deles, como demandado. Dos casos envolvendo produtos agrícolas, cinco já foram concluídos e três se encontram em andamento (esses casos serão analisados abaixo). O Brasil ainda participou (ou participa) na condição de parte interessada em dez outros casos, três dos quais tendo por objeto produtos agrícolas.8

disputas comerciais perante a omc envolvendo produtos agrícolas brasil como parte
Condição Oponente Matéria Situação
Demandante Comunidade Européia (CE) Regime relativo a importação de frango (DS69) concluído
CE Tratamento preferencial a exportações de café solúvel (DS209) concluído
Argentina Direitos antidumping sobre exportações de frango (DS241) concluído
EUA Regime do Estado da Flórida relativo a importação de suco de laranja (DS250) concluído
CE Subsídios a exportação - Açúcar (DS266) em andamento
EUA Subsídios a exportação e apoio doméstico - Algodão (DS267) em andamento
CE Classificação alfandegária de pedaços sem ossos de frango (DS269) em andamento
Demandado Filipinas Medidas compensatórias sobre as exportações ao Brasil de coco ralado (DS22) concluído
Sri Lanka Medidas compensatórias sobre as exportações ao Brasil de coco ralado (DS30) concluído

Fonte: Organização Mundial do Comércio, Update ofWTO Dispute Settlement Cases (WT/DS/OV/19, 6.2.2004)

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A) Demandas concluidas

1. Medidas compensatorias sobre as exportações ao Brasil de coco ralado (DS22) ("Coco Ralado")

Esse foi um dos primeiros casos requeridos sob as regras do Entendimento sobre as Regras e Procedimentos Regulando a Solução de Controvérsias (ESC) da OMC (WT/DS22). Em resumo, as Filipinas9 contestaram a imposição pelo Brasil de medidas compensatórias contra as exportações de coco ralado de tal país. As datas de apresentação da petição requerendo a imposição de medidas compensatórias (17.1.1994), de imposição de medidas compensatórias provisórias (23.5.1995) e definitivas (18.8.1995) e de entrada em vigor do Acordo de Marraqueche que Estabelece a Organização Mundial do Comércio ("Acordo de Marraqueche") (1.1.1995),10 criaram um problema de direito intertemporal e de retroatividade das normas dos Acordos da OMC.

Em suma, o Órgão de Apelação da OMC (OA) decidiu favoravelmente ao Brasil, com base no princípio de irretroativi-dade do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) (Artigo 32.3), com reforço no princípio de direito internacional público da irretroatividade e no Artigo 28 da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados - CVLT.11 Resolvendo outra questão de direito intertemporal (transição do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da Rodada Tóquio para o ASMC da Rodada Uruguai), o OA também rejeitou a opção das Filipinas de questionar as medidas compensatórias brasileiras com base nas então novas normas processuais do ESC.

  1. CE - Regime de importação de frangos ("CE - Importação de Frangos") (DS69)

    Esse caso envolveu duas questões perante o SSC, a saber, "o regime de importação de determinados produtos de carne de frango congelada" imposto pela Comunidade Européia (CE), bem como a implementação, pela CE, de uma quota tarifária para tais produtos, conforme havia sido estabelecido em acordo firmado entre a CE e o Brasil. O Brasil conseguiu fazer prevalecer apenas um dentre tantos argumentos argüidos perante o SSC (ou seja, a impossibilidade de um País-membro importador oferecer ao importador a opção entre o uso do preço CIF da remessa e outro método de cálculo, com base no Artigo 5.5 do AsA12). Todos os demais argumentos foram rejeitados, por inconsistência jurídica ou falta de provas.13

    Em suma, a CE havia celebrado um acordo bilateral com o Brasil (Acordo das

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    Sementes Oleaginosas), o qual estabeleceu tarifa zero para uma quota global anual de 15.500 toneladas de carne de frango congelada, quota essa inserida na Lista de Concessões LXXX da CE (LC LXXX). Dentro da LC LXXX, a CE reservou-se o direito de introduzir uma tarifa para eventuais importações em volume excedente à quota estabelecida para tais importações de carne de frango, caso as condições para imposição das "Salvaguardas Especiais" do Artigo 5 do AsA se fizessem presentes (no caso, um "gatilho" de preço).

    O Brasil alegou principalmente que a quota estabelecida pela CE seria apenas aplicável ao Brasil, não se perfazendo uma quota global. Esse argumento foi rejeitado, pois não existia na LC LXXX (uma obrigação multilateral da CE, sob os auspícios da OMC, já que anexado ao Acordo de Marraqueche) qualquer referência ao Acordo das Sementes Oleaginosas (considerado como parte de um acordo bilateral entre o Brasil e a CE). Tampouco existia uma cláusula conferindo exclusividade de quota para o Brasil. Ademais, o O A excluiu a quota tarifária objeto do acordo entre o Brasil e a CE do âmbito do Artigo XIII: 2(d) GATT 1994, pois esse artigo...

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