O contrato de abertura de crédito - natureza e regime jurídico

AutorEduardo Salomão Neto
Páginas9-21

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Seja no relacionamento humano, seja na reflexão sobre questões técnicas, não é incomum que a proximidade excessiva conduza ao embotamento dos sentidos. A vida psicológica escapa à matéria de abrangência da publicação onde este trabalho aparece. Notaremos apenas, portanto, que distorções de visão sobre a natureza jurídica de um instituto são tanto mais frequentes quanto seja ele encontradiço. Disso nos fornece eloquente exemplo o contrato de abertura de crédito.

Sendo na prática o modelo básico ado-tado pelas instituições financeiras em suas operações, existe uma tendência a tratá-lo como forma contratual específica, o que não é. O engano resultante não é de modo nenhum inocente, porque afasta importantes experiências e conhecimentos já formados sobre o instituto, inclusive quanto a prote-ção das partes do negócio. Estas ficam substituídas pela incerteza e experimentação conceituai, mais apropriadas às ciências médicas do que à segurança que deve inspirar o Direito.

Refletindo sobre essa lacuna é que nos animamos a enveredar pela natureza jurídica do contrato de abertura de crédito, e dela tirar as conclusões cabíveis.

Características gerais e natureza jurídica

Por meio do contrato de abertura de crédito, uma parte, dita creditante, compromete-se a desembolsar recursos em favor de outra, designada creditada, gerando os desembolsos crédito sujeito a remuneração financeira a ser paga em favor do creditante.

O creditado interessa-se pelo negócio porque através dele pode valer-se de recursos financeiros que fiquem reservados em vista de projetos ou necessidades futuras, para os quais não necessite de desencaixe imediato. Em relação ao mútuo direto, não necessita o financiado arcar com os riscos do recebimento dos recursos desde logo, por exemplo, a diferença entre os juros que passaria a dever ao financiador e o benefício que pode obter com o uso dos recursos.

Em contrapartida, o interesse do financiador, normalmente uma instituição financeira, é encontrar tomador para os recursos que capta no mercado, ampliando as ativi-dades que constituem seu objeto social.

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A abertura de crédito admite duas modalidades principais. A primeira, dita simples, permite o saque do valor creditado sem a possibilidade de restauração de tal valor por via de pagamentos parciais. Na segunda modalidade, chamada de abertura de crédito em conta corrente, pagamentos parciais restauram o valor do crédito aberto, e permitem saques adicionais. Note-se que em ambas as formas de abertura de crédito, os saques podem ser efetuados uma ou mais vezes.

Dito isto, devemos começar nossa análise por indagação sobre a natureza jurídica do contrato de abertura de crédito. Conforme demonstraremos, diferentes respostas a esta questão poderão levar a diferenças quanto ao regime jurídico aplicável ao negócio.

Como de praxe, não faltam teorias estrambóticas que procurariam explicar sua natureza com base na assimilação a negócios já existentes. A mais conhecida destas é a que interpreta o negócio como um mútuo cumulado com depósito junto à instituição mutuante dos recursos. Em uma tal estrutura, considerasse que o beneficiário primeiro recebeu um empréstimo de dinheiro, que se obrigou a depositar junto à instituição financeira concedente. Em vista do depósito, ficaria o beneficiário autorizado a fazer os saques por ele solicitados até o limite do valor objeto do mútuo inicial.1 Essa teoria não merece aceitação porque o depósito é um contrato real, isto é, necessita para se firmar da entrega da coisa, real ou simbólica, segundo dispõe o art. 281 do Código Comercial. Essa entrega não existe, quer de forma real, quer de forma fícta: o creditado nunca teve o dinheiro para depositá-lo, e os contratos usualmente utilizados na prática bancária não prevêem uma entrega simbólica do dinheiro ao creditado, seguida de depósito.

Feita uma tal constatação, resta discutir duas teorias plausíveis sobre o tema,2 e cuja adoção poderia levar a importantes efeitos práticos. A primeira teoria considera a abertura de crédito como um contrato autónomo, que nada tem a ver com o mútuo, contrato esse que tem nos desembolsos por parte do creditante seu momento, de execução. A teoria oposta considera a abertura de crédito como contrato preliminar, ou seja, uma promessa de mútuo futuro.3

Não nos parece haver fundamento definitivo a justificar em si mesma a escolha de uma ou outra teoria. Raramente tal fundamento existe na questão da autonomia de novas formas contratuais, questão que seria em si estéril, e a que não deveríamos prestar atenção, não fossem os efeitos que traz.

De início, deve-se notar que tem sido negada com convincentes argumentos-, em doutrina, a possibilidade de existência de contratos mistos ou inominados, tendo em: vista a regra de que qualquer contrato é absorvido pelo tipo legal correspondente à prestação principal ("teoria da absorção").4 Mesmo sem tais argumentos, a solução natural seria enquadrar a nova forma jurídica no arcabouço das já existentes, como o mútuo e sua promessa, segundo tendência doutrinária e jurisprudencial.5

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Os argumentos levantados contra a teoria do contrato preliminar são normalmente genéricos é pouco convincentes. Centram-se tais argumentos no fato de que a diversidade de operações através das quais se pode conceder o crédito (liberação em dinheiro, aceite em títulos de crédito, concessão de garantias etc.) seria incom1 patível com o contrato. Este deveria ser marcado pela uniformidade dos negócios jurídicos a cuja celebração obriga.6

Essas críticas não soam procedentes, de início, porque não nos parece que o negócio de abertura de crédito possa se traduzir em outra prestação para o financiador' que não um mútuo. As eventuais promessas de se aceitar títulos de crédito, ou dar . garantias, feitas pela instituição financeira, não podem a, bem dizer ser consideradas crédito, não tendo a característica básica deste, que é a substituição de um direito real presente sobre um bem ou soma em dinheiro, por um direito obrigacional futuro. Nesse passo, só se pode falar em abertura de crédito propriamente dita em relação a desembolso em moeda futuro, em benefício do próprio creditado ou de terceiro por ele indicado.

Mesmo independentemente disso, nada impediria que se considerasse que. vários contratos definitivos, de diferentes naturezas, bem como vários contratos preliminares, pudessem se abrigar sob o mesmo, instrumento contratual.

Visto o contrato preliminar como uma obrigação de fazer, que obriga apenas à celebração de outro contrato,7 parece ser figura que abrange perfeitamente a abertura de crédito. Nada obsta nesse ponto que a decisão de contratar fique a cargo de apenas uma das partes: o creditado.

Ainda com tudo isto, o melhor argumento a favor desta teoria no entanto nos parece vir do fato de que, considerando os futuros desembolsos o momento inicial da celebração de um contrato de mútuo, aplica-se à relação de crédito que venha a aparecer o regime jurídico do mútuo. Tal regime, e inclusive as adições a ele, foi elaborado com vistas ao equilíbrio das relações entre prestadores e tomadores de recursos financeiros, não havendo sentido em desprezar essa experiência para considerar a abertura de crédito um novo instituto jurídico.

Exemplo das regras relativas ao mútuo que se elevem ter como aplicáveis também a desembolsos subsequentes a uma abertura de crédito são:

i) a impossibilidade de reaver mútuo feito a menor, sem prévia autorização daquele sob cuja guarda estiver, impossibilidade essa que se estende inclusive à tentativa de reaver o valor de garantidores (art. 1.259 do Código Civil);

ii) o prazo de 30 dias aplicável para a restituição do mútuo de dinheiro, na falta de convenção expressa (art. 1.264, inc. II. do Código Civil).

Mais ainda, as próprias regras da lei da usura relativas à capitalização de juros poderiam deixar de ter aplicação às aberturas de crédito, já que sua filiação básica é o art. 253 do Código Comercial, inserido no capítulo dedicado ao mútuo mercantil,

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em cujos termos não se podem contar juros sobre juros, exceto pela inclusão no saldo anual da dívida.8

Abertura de crédito em favor de terceiro

A abertura de crédito pode prever desembolso em favor do próprio creditado ou de terceiro por ele designado, o qual não fica apenas por isso devedor do montante objeto da operação. Em tal hipótese aplicam-se para reger as relações entre as partes as regras dos arts. 1.098 a 1.100 do Código Civil Brasileiro.

De acordo com tais regras a obrigação de desembolso poderá ser exigida tanto pelo creditado original como pelo terceiro beneficiário. É claro que isso se definirá pelos termos do contrato, podendo ficar o pedido de desembolso á cargo do creditado original ou do beneficiário.

Escolhendo-se a segunda de tais alternativas, pode-se indagar se é facultado ao creditado original rescindir o contrato de abertura de crédito, em vista do art. 1.099 do Código Civil, em cujos termos se "ao terceiro, em favor de quem se fez o contrato, se deixar o direito de reclamar-lhe a execução, não poderá o estipulante exonerar o devedor".

Não se deve, entretanto, confundir o direito de reclamar a execução a que se refere o Código Civil, com o mero poder de solicitar saques, que pode ser transferido a terceiros. De fato, os saques sob uma linha de crédito podem depender de vários fato-res, como a apresentação de certos documentos, a ocorrência de um dado evento ou a vontade de uma terceira parte, sem que isso signifique a atribuição do poder de exigir execução a terceiros. Em vista dis-so, se se quiser atribuir ao beneficiário que não é parte no contrato...

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