Contribuições da psicodinâmica e da psicologia social do trabalho para a saúde do motorista da Uber

AutorCyntia Santos Ruiz Braga
Ocupação do AutorMestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP)
Páginas118-134
118 Cyntia Santos Ruiz Braga
CONTRIBUIÇÕES DA PSICODINÂMICA E DA PSICOLOGIA SOCIAL DO
TRABALHO PARA A SAÚDE DO MOTORISTA DA UBER
Cyntia Santos Ruiz Braga(1)
Introdução
Nem sempre o que parece, de fato é. Diversas afirmações podem coincidir com a realidade, mas a in-
terpretação da realidade depende do lugar de fala e de quem fala. A fim de identificar anseios e conflitos da
pessoa humana que está por trás da figura do trabalhador que desempenha atribuições que o caracterizam
como motorista da Uber, dois pontos de partida são utilizados: o referencial teórico da escola dejouriana e os
depoimentos destes trabalhadores, encontrados em diferentes processos ajuizados em face da empresa Uber,
assim como nas entrevistas extrajudiciais, seja em mídia eletrônica nacional ou internacional.
A Psicodinâmica do Trabalho contribui porque analisa o prazer e o sofrimento que a gestão do trabalho
por algoritmos acarreta ao psicológico deste trabalhador, sem desprezar o contexto socioeconômico perme-
ado por crises em que se encontra. Trata-se de mais um trabalhador que participava de uma multidão de
desempregados e encontrou na empresa e marca Uber, mais do que um “bico” para preencher lacunas tem-
porais de desemprego, encontrou uma verdadeira identidade de empréstimo (GAULEJAC, 2007, p.21), muito
além da sua sobrevivência econômica.
Analisa-se, por meio do parâmetro da fala do trabalhador — a partir das ferramentas da psicanálise —, a
normalidade que o próprio trabalhador promove, através do sopesar da sua carga psíquica, das suas angústias
(patológicas ou criativas), do seu esforço para lidar com as dificuldades existentes entre o trabalho real e o
trabalho prescrito, mediante estratégias defensivas que emprega para compreender o trabalho, incorporar à
sua subjetividade e formatar sua ideologia ocupacional. Nessa linha citamos o objetivo de Christophe Dejours,
segundo Heloani e Lancman:
[...] busca compreender aspectos psíquicos e subjetivos que são mobilizados a partir das relações
e da organização do trabalho. Busca estudar os aspectos menos visíveis que são vivenciados pelos
trabalhadores ao longo do processo produtivo. (HELOANI, LANCMAN, 2004, p.82)
Tais análises são de extrema importância porque o contexto em que se insere o trabalho e o sistema de
gestão deste trabalho podem influenciar no adoecimento destes trabalhadores.
Afinal, mais do que interpretar o contrato de prestação de serviço ou o contrato de adesão firmado entre
a empresa UBER e o motorista que a ela se vincula, objetiva-se buscar soluções minimizadoras do desconforto
gerado pelos problemas característicos deste novo modelo de viabilizar trabalho e renda.
Qualquer proposta de melhora na gestão e execução deste serviço, como também qualquer contribuição
para uma assistência em saúde deste trabalhador da Uber, pode galgar o retorno da identidade laboral. Ali-
cerçados no princípio da cooperação, diversas soluções podem viabilizar a humanização da relação de capital
e trabalho no âmbito da estrutura digital compartilhada.
Essa abordagem sistêmica relacional parte do pressuposto que a organização, de um lado, interfere no
prazer e sofrimento do trabalhador e, de outro lado, sofre a modificação deste trabalhador conforme permis-
(1) Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Graduada em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCamp). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa “O trabalho além do Direito do Traba-
lho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral”, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). E-mail: cyntia@
advocaciaruizbraga.com.br
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sões conferidas pelos princípios norteadores, frutos de um majoritário discurso social vigente e que, por muitas
vezes, tem como foco principal a sobrevivência da atividade econômica e não a dignidade da pessoa humana.
Algumas características são encontradas na linguagem que a empresa Uber utiliza para com o trabalha-
dor. Esta linguagem que compõe o discurso da empresa permite identificar a visão econômica e o valor que a
empresa atribui a este trabalhador.
Se o discurso majoritário é o capitalista contemporâneo, temos as leis da racionalidade econômica e seus
princípios de produtividade, flexibilidade e consumo (ROIK e PILATTI, 2009, p. 1) influenciando esta gestão.
Aparentemente, o discurso se pauta por ser participativo, do ponto de vista da integração do homem ao capital,
mas, na verdade, pode proporcionar tão somente o comprometimento e a submissão do trabalhador à intensifi-
cação do trabalho e à incrementação da produção dentro da economia colaborativa (LEME, 2017, p. 84).
Se o discurso majoritário é influenciado pela sociologia econômica, temos como principal exemplo a
economia solidária(2) (GAULEJAC, 2007, p. 23) e, nessa linha, uma gestão mais humana de pessoas, uma re-
tribuição e cooperação não somente simbólicas, mas materialmente justas e democráticas quanto ao acesso
da autonomia econômica. Neste discurso temos, ao menos, a possibilidade da emancipação do trabalho alie-
nante (ANTUNES, 2018, p. 95) e a libertação do trabalhador em servidão voluntária (ANTUNES, 2018, p. 25),
recuperando a propriedade de sua rotina por meio da tecnologia.
Indaga-se qual, dentre esses discursos, é o que impera e influencia na gestão de trabalhadores que se
orientam e se coordenam pelo aplicativo da empresa Uber. Mediante análise do discurso destes motoristas,
podemos identificar se há sofrimento ou prazer, subordinação ou autonomia, quanto à utilização das novas
formas de se prestar serviço sob demanda.
Num momento que é caracterizado pelo tempo da técnica e das tecnologias; da reinvenção dos mé-
todos, da simplificação do complexo e da complexificação do simples (FELICIANO, 2017), o presente artigo
contribui para a constatação de existência ou inexistência da atenção à saúde mental do trabalhador, durante
sua atividade na plataforma sistêmica da empresa Uber, com auxílio da análise da psicodinâmica.
1. Contribuição da psicologia social do trabalho e da psicodinâmica
A psicologia social observa o trabalhador em suas interações com o trabalhar, com seus colegas, com sua
liderança profissional (ainda que fragmentada e exercida por algoritmos), dentro de um contexto dinâmico em
que este trabalhador se encontra.
A psicodinâmica, por sua vez, estando em sua terceira fase(3) se consolidou e se propagou enquanto
modo de intervenção científica que explica os efeitos do trabalho nos processos de subjetivação, na emergên-
cia de patologias e na saúde dos trabalhadores (OLIVEIRA e FERREIRA, 2015, p. 166). Antes denominada de
psicopatologia(4), a psicodinâmica do trabalho (ou análise psicodinâmica das situações de trabalho) tem como
objetivo inicial e sua contribuição final a análise das relações entre trabalho e trabalhador e sua repercussão
na saúde mental.
(2) A economia solidária é um projeto equivalente à não violência na política. Ela procura construir uma sociedade apaziguada, na
qual a economia ajuda a reduzir as desigualdades entre ricos e os pobres. Uma economia mais justa, que concilia os interesses em vez
de opô-los, uma economia concreta, mais próxima dos produtores, dos consumidores e dos investidores, uma economia humanista,
reconciliada com a política (LAVILLE, 1999).
(3) Cumpre esclarecer que, historicamente, a psicodinâmica passou por três fases. De acordo com Mendes (2007, p. 130), estas três
fases se caracterizaram por publicações específicas, na verdade, se complementando. A primeira fase, por volta de 1980, teve como
foco principal no estudo da psicopatologia do trabalho, e foi marcada pela publicação do livro traduzido para o Brasil como A loucura
do trabalho: estudos de psicopatologia do trabalho. Por volta de 1990, a segunda fase fundou a disciplina de psicodinâmica do traba-
lho que problematizou o sofrimento produzido a partir da relação homem-trabalho, enfatizando vivências de prazer e sofrimento e a
reestruturação da organização do trabalho.
(4) Quanto às suas origens, portanto, a precursora da Psicodinâmica foi a publicação de “Travail: usure mentale. Essai de psychopa-
thologie du travail”, traduzido no Brasil por “A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho”, de 1987, de autoria de
Christophe Dejours e que expõe a discussão dos efeitos do trabalho sobre o aparelho psíquico humano que sofre mudanças (MERLO,
2002, p. 131).

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