O controle de constitucionalidade da capacidade normativa de conjuntura do conselho monetário nacional e do banco central: o caso do fundo garantidor de créditos (FGC)

AutorJean Paul C. Veiga da Rocha
Páginas111-127

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Ver Nota12

1. Burocracia, direito e ordem democrática

A crescente atuação do Estado na eco-npmia, representada pelo fenómeno da "inflação normativa", deixa perplexa a doutrina jurídica tradicional, fortemente ape-gada a postulados do constitucionalismo clássico.

O princípio da separação de poderes, elevado à condição de verdadeiro mito do Estado de Direito, serve de couraça a um pensamento jurídico-político que reluta em aceitar a constitucionalidade das normas editadas por órgãos do Poder Executivo. Dentre estes, ocupam lugar especial as autoridades monetárias que, além de exercer as funções monetárias clássicas, regulam e fiscalizam o sistema financeiro. No Brasil, são elas o Conselho Monetário Nacional - CMN, e o Banco Central do Brasil - Bacen, criados no bojo do regime político autoritário instaurado em 1964.

Dotados de numerosas competências, esses órgãos governamentais editam, em

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curtos lapsos de tempo, um grande número de normas que regulamentam uma infinidade de transações económicas, alterando desde a política monetária até os contratos de consórcio. Essa sua capacidade normativa de conjuntura? apesar da contestação oriunda da doutrina jurídica predominante, é efe-tivo - os agentes económicos e os órgãos estatais respeitam e acatam essas normas.3

Essa "inflação normativa" provocada pelo Poder Executivo termina por colocar em xeque o consagrado princípio da separação dos poderes, atribuído a Montes-quieu, implicando a reformulação ou mesmo a revogação de categorias e esquemas interpretativos jurídicos basilares do Estado Democrático de Direito.

Mais que isso, o poder normativo das autoridades monetárias implica a retomada, em novos termos, do clássico debate sobre o papel da burocracia nas sociedades democráticas.

É bastante conhecida a caracterização que Max Weber fez do fenómeno burocrático moderno (distinto das burocracias antigas).4 Para ele, a organização burocrática do Estado e das empresas modernas tem competências hierarquizadas determinadas por leis e regulamentos, um corpo de funcionários profissionais (cujo recrutamento e promoção na carreira dão-se segundo o mérito). As funções não se confundem com os homens, o que garante a força impessoal das organizações públicas e privadas. Trata-se, como se sabe, de mais um tipo ideal de Weber.5 A burocracia, aqui, é pensada não como um tipo de governo, mas sim como um sistema de administração, e a buro-cratização, processo conexo ao de racionalização, desenvolvido em meio a uma luta entre inovação carismática e racionalização burocrática.6 Embora a experiência alemã fosse sua referência empírica mais importante, aquele processo seria uma característica universal da sociedade moderna.7

Weber constatou a superioridade das modernas técnicas da organização burocrática em relação às formas tradicionais de organização social, o que indicava que as sociedades industriais avançadas não poderiam mais abrir mão daquelas técnicas.

Entretanto, mais do que a eficiência, foram as consequências políticas da expansão do poder burocrático que preocuparam Weber.8 Para ele, há uma antinomia insolúvel: ao mesmo tempo em que a moderna burocracia traz eficiência, ela pode minar a sociedade liberal, destruindo as próprias premissas sociais das quais depende a conduta individual. Um dos perigos reside na tendência apresentada pela burocracia de inibir o surgimento de novas lideranças. Daí

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a necessidade do desenvolvimento de instituições que viabilizem o aparecimento de líderes - a democracia plebiscitaria evitaria o crescimento exagerado da burocracia. O outro perigo consistiria na propagação de valores instrumentais na sociedade.

Este último aspecto é importante para que se entenda a relação entre burocratiza-ção e racionalização do direito. Foi a burocracia que estabeleceu as bases da administração de um direito racional, conceitual-mente sistematizado.

A racionalização do direito deve ser vista em duas perspectivas: interna e externa.9 Do ponto de vista interno, ela foi fruto principalmente do trabalho dos juristas profissionais (dos práticos, na Inglaterra, onde o Direito Romano foi barrado pelo corporativismo dos advogados ingleses; dos teóri-cos, nas universidades). A difusão da escrita possibilitou o registro dos antecedentes judiciais e a codificação.

Enquanto o trabalho dos juristas contribuiu para a racionalização do direito formal (ponto de vista interno), os processos económicos e políticos contribuíram para racionalizar o direito material (perspectiva externa). Nesta tensão direito formal/direito material, o processo de burocratização tem exercido papel fundamental, mediante a profissionalização dos operadores do direito e a concretização do valor liberal da impessoalidade do Estado.

Entretanto, o agigantamento das burocracias económicas no século XX, especialmente das autoridades monetárias,10 radicaliza essa tensão, exigindo a revisão ou mesmo a revogação de princípios e categorias jurídicas do modelo liberal de direito. Mais que isso: esse crescimento solapa o direito formal, transformando a tensão em subordinação do direito formal ao direito material.

O Estado liberal aceitou, como exce-ção ao princípio da legalidade, o "poder discricionário"11 do Executivo, ou, melhor dizendo, a expressão da polícia administrativa12 mediante atos praticados no exercício

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de competência discricionária.13 Se a lei deveria ser um preceito genérico e abstra-to, a sua execução exigiria uma concretização que seria levada a cabo mediante atos administrativos cujo mérito não poderia ser discutido pelo Poder Judiciário. O "poder discricionário" é exercido no caso concreto, segundo critérios de conveniência e oportunidade, sobre cujo conteúdo não se podem formular juízos de legalidade.14 No Estado intervencionista deste século, Executivos extremamente fortalecidos e burocracias agigantadas ampliaram assustadoramente não somente seu "poder discricionário", nias também o poder normativo - no lugar do Estado Legislativo -, entra em cena o Estado Administrativo, no qual não tem mais espaço o monopólio da produção da lei - em sentido material - pelo Parlamento.

É no sistema financeiro do Estado Administrativo que o poder da burocracia se manifesta com mais .veemência, principalmente se a autoridade monetária tem autonomia formal, ou seja, determinada por lei. Entretanto, mesmo quando esta inexiste, pode haver a autonomia de fato, já que a complexidade técnica de suas atribuições inviabiliza um controle absoluto das lideranças políticas sobre a burocracia.15 A relação íntima e necessária entre o manejo dos instrumentos de política monetária e as demais políticas públicas, principalmente a política fiscal, com consequências dire-tas nas políticas sociais, além de óbvia, ressalta o caráter político da atuação da burocracia económica.

Não se trata, porém, de mudança meramente quantitativa, mas sini qualitativa. A burocracia económica deixa de ser mera executora de políticas, transformandorse oficialmente emformuladora das mesmas. Todavia, sua crescente importância política não vem acompanhada de mecanismos de responsabilidade (accountability) adequados. Uma das razões para tanto é inerente à missão da autoridade monetária: o sigilo como condição da estabilidade do sistema financeiro. A racionalidade instrumental subjuga a exigência de publicidade, princípio basilar do modelo liberal-democráti-co de direito.

A superação da distinção entre for-mulação e execução dás políticas monetá-ria/creditícia ê de regulação/supervisão do sistema financeiro obriga os juristas práticos e teóricos e o Judiciário a repensar os poderes da elite da burocracia económica.

Todavia, como este trabalho, através de um estudo de caso, pretende demonstrar a tensão entre eficiência económica e certeza jurídica, entre governabilidade substantiva e legitimidade legal-racional,16 num contexto de manutenção dà estabilidade económica a qualquer custo, em suma, fa-tores não-constitucionais subjacentes17

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intimidam.e confundem o Poder Judiciário, que se torna ambíguo e contraditório, em meio à distorção da ordem constitucional vigente no País.

2. CMN e Bacen: um enquadramento jurídico

Em meio à complexidade das decisões, fórmulas e instituições que devem ser ado-tadas ou reformuladas, enquanto se anunciam ou prenunciam crises sistémicas e a ruína de economias nacionais, pouco ou nenhum lugar no debate público parece estar reservado para os que não são economistas. Cientistas políticos, filósofos, sociólogos, historiadores e juristas práticos e teóricos,18 atónitos, acompanham os diagnósticos e prognósticos dos teóricos da escassez.

No caso do Brasil - país em desenvolvimento e em processo de consolidação de sua ordem democrática -, o combate à inflação tem sido a tónica dó debate sobre á reformulação do sistema financeiro. Planos económicos sucessivos têm suscitado calorosos debates acerca dos limites dos poderes da elite da burocracia económica. Passada a euforia da redemocratização, a política económica, em sentido amplo, ou mais especificamente, as políticas fiscal, monetária, cambial e creditícia ocuparam o centro das atenções.

Atualmente, no ordenamento jurídico brasileiro, da formulação e da execução dessas políticas estão incumbidos o CMN e o Bacen, concentrando-se, naquele primeiro, as competências normativas, e, neste último, as competências de execução e de fiscalização. É verdade que esses órgãos já existem desde o regime militar - foram criados em 1965 -, mas encontram-se agora inseridos em arranjos institucionais democráticos, sob a égide do princípio da separação de poderes.

O Quadro 1 apresenta urri rol mais detalhado, porém não exaustivo, das competências das autoridades monetárias no Brasil.19 O critério usado para a classificação é jurídico, priorizando a estrutura...

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