O controle da legalidade urbanística

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas263-289

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Toda infracción urbanística llevará consigo la imposición de sanciones a los responsables.

Texto Refundido de la Ley del Suelo, de 1992, art. 261.

1. Tipologia dos ilícitos urbanísticos

Ao lado do princípio do urbanismo como função pública, o princípio dele decorrente do respeito à ordem urbanística cumpre ser considerado por todos os agentes que atuam no espaço urbano, sob pena de devida repressão1. Na teoria do Direito Urbanístico, os ilícitos cometidos em detrimento da ordenação urbana podem, grosso modo, ser classificados em dois grandes tipos básicos segundo derivem de atos puramente clandestinos daqueles agentes ou de atos deles incompatíveis com a deliberação da autoridade.

O primeiro caso envolve todas as situações em que o particular – ou, eventualmente, o próprio Poder Público – promove algum tipo de aproveitamento do solo urbano sem ter a necessária concordância prévia da autoridade local. São, pois, atos ditos clandestinos embora não possam nunca ser ocultos porquanto interferem com a cidade, “arquivo de pedra”. A outra hipótese abrange as situações em que a autoridade analisou o projeto e deliberou aceitá-lo por estar de acordo com a lei e com as conveniências da coletivi-dade, porém durante a execução faz-se um desvio daquilo que foi licenciado ou autorizado pelo Município. Ademais do desfazimento, em ambos os casos poderá haver, cumulativamente, responsabilidade penal e administrativa para o proprietário do empreendimento e, ademais, responsabili-

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dade corporativa para o arquiteto responsável, sobretudo na segunda hipótese.

Ainda que a lei possa não distinguir as sanções, do ponto de vista fático as situações apresentadas são bastante diferentes porquanto na primeira não houve nenhum tipo de controle a priori da autoridade pública: o particular simplesmente parcelou, edificou, demoliu, instalou certo uso, etc., sem concordância alguma do Poder Público com a atividade. Na segunda o caso será diferente porque o interessado – talvez agindo com maior intensidade de dolo – tinha ciência do projeto aprovado e que deveria realizar mas, na busca de vantagem, realiza outro, diverso, distinto. Por exemplo, no projeto de parcelamento as vias apresentam 14 m de largura mas são executadas com apenas 12 m ou os lotes têm dimensão menor que a constante do projeto autorizado (não se admitindo, neste caso, a venda ad corpus que importaria em prejuízo aos adquirentes dos lotes). Daí a importância do controle a posteriori da atividade urbanística, como veremos em seguida. Em ambos os casos, a ilicitude é manifesta2.

Se quisermos resumir em duas palavras-chaves, podemos dizer que os ilícitos urbanísticos classificam-se com base na clandestinidade ou na incompatibilidade. Mas entenda-se: a clandestinidade refere-se ao próprio aproveitamento do solo e a incompatibilidade relaciona-se com a deliberação da autoridade municipal. Veja-se que a edificação clandestina pode até obedecer os parâmetros urbanísticos legais, o que não sana e nem afasta o vício de origem porém facilitará sua regularização, futura e eventual. Além do art. 50/I e II da

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lei do parcelamento – penalizando a prática do loteamento clandestino e irregular –, tal distinção básica apresenta-se nos já referidos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Tanto o art. 63 quanto o art. 64 da Lei no 9.605/98 protegem o bem cultural quando intervenções forem feitas nele próprio ou no seu entorno “sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida”. O primeiro artigo trata de alterar-se o aspecto ou estrutura ou local protegido e o segundo da promoção de construção (tomado o termo em sentido amplo) em solo não edificável ou no seu entorno, ambos os dispositivos contendo aquela mesma cláusula final explicitadora da ilegalidade.

Assim, vinculando-se o parcelamento e a edificação com a tipologia básica apresentada – e a consequente sanção –, pode-se levantar o seguinte quadro:

Quadro 16 – Ilícitos urbanísticos: tipologia

(1) Cf. art. 50/I e II da Lei nº 6.766/79; (2) Tratar-se-á de crime se o solo, ou seu entorno, contiver restrições derivadas da proteção do patrimônio cultural (art. 64 da Lei nº 9.605/98).

Como visto, a ilegalidade na constituição do lote e no levantamento da edificação são tratadas diferentemente pelo Direito Urbanístico. Pela dimensão e perenidade do impacto negativo que produz para a cidade, o loteamento clandestino constitui crime contra a Administração Pública, que não autorizou o empreendimento realizado, feito à sua revelia. Em outras palavras, “dar início, de qualquer modo” (art. 50/I da Lei nº 6.766/79, o que constitui tipo aberto) a loteamento sem autorização sujeita todos os responsáveis à pena de re-

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clusão e multa por configurar crime doloso, de mera conduta, de consumação instantânea mas de efeitos permanentes e continuados (esta última característica também existe no crime de desabamento, cf. art. 256 do Código Penal). Tratase, pois, de crime de graves consequências, quase irreversíveis, cujas vítimas são, além da coletividade em geral, os adquirentes dos lotes em particular, que normalmente desconheciam o ilícito original. Como bem observa José Afonso da Silva, “praticam-se dois crimes de uma vez – um aos adquirentes dos lotes e outro aos princípios urbanísticos – porque tais loteamentos não recebem o mínimo de urbanificação que convenha ao traçado geral da cidade”3.

Já a edificação clandestina – salvo casos especiais – constitui ilícito que é punido apenas na órbita administrativa entre nós, muito embora haja ordenamentos que a tipificam (v. art. L. 480-1/12 do Code de l’urbanisme). E cabe aduzir que no ordenamento francês há previsão expressa de que responde pela infração penal (“construction sans permis”, dentre outros tipos) inclusive o arquiteto – vir bonus aedificandi peritus –, além dos beneficiados pela ilicitude (art. L. 480-4). Entretanto, ambos – lote e edificação – têm efeitos permanentes, o que explica e justifica a ampliação dos instrumentos de verificação da legalidade, tanto no caso de clandestinidade quanto no caso de incompatibilidade com o ato da autoridade.

2. Aspectos estruturais da resposta do ordenamento violado

Nem o lote se constitui e nem a edificação se realiza individualmente e num estalo, como uma manifestação de simples vontade do proprietário do lote ou do arquiteto autor do projeto4. O Poder Público necessariamente partici-

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pa de todo o processo, outorgando autorização (discricionária) no primeiro caso e licença (vinculada) no outro. Autorização e licença são atos administrativos que consentem com tais atividades a partir da ótica pública, baseada em pressupostos diver-sos. E lembre-se que a licença edilícia, como ato vinculado de controle da legalidade urbanística, é um gênero que comporta diversas espécies: licença para edificar, reformar, demolir, reconstruir (e muitas vezes se toma o gênero pela espécie).

Considerando que a atividade edificatória constitui-se mesmo num longo processo (ou seja, perfaz-se no tempo, em várias etapas e mediante intervenção de vários agentes), o controle público da observância da legalidade urbanística em geral – e do CA em particular –, quanto ao momento de incidência, é (i) prévio, (ii) concomitante e (iii) posterior ao término da obra, com consequências diversas (Quadro 17). E as sanções, por sua vez, implicam em restauração da ordem urbanística violada, com alteração final da realidade física (demolição) ou, eventualmente, apenas sanção pecuniária (multa), ou ambos. Diante do abuso do direito de construir, a demolição parcial ou total da obra ilegal é, de fato, a mais evidente das respostas do ordenamento.

Quadro 17 – Controles da legalidade urbanística

(1) O canteiro pode ser fiscalizado tanto pelas autoridades locais quanto pelo CREA.

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De início, a controle público manifesta-se na análise do projeto arquitetônico pela autoridade local, de vez que o proprietário não pode alcançar a licença edilícia em desobediência à lei urbanística – o que configuraria claro ato ilícito do funcionário responsável (embora não haja, no campo urbanístico, norma semelhante ao art. 67 da lei dos crimes ambientais). Na legislação francesa, o projeto arquitetônico define, por meio de plantas e memoriais, “a implantação da edificação, sua composição, sua organização e a expressão de seu volume, assim como a escolha dos materiais e das cores” (Code de la construction, art. L. 111-2). Entre nós não há tantas exigências e especificações embora o foco seja o mesmo. Como constitui obrigação do profissional da Arquitetura atuar na forma da lei – notadamente aquela que rege seu “saber especializado” –, o controle começa portanto ainda na fase do projeto da obra e estende-se durante toda a construção, em geral de dilargada duração. Depois da obra pronta, ele ocorre aquando da concessão do certificado ou auto ou termo de conclusão dela (popular “habite-se”), momento em que o agente público verifica eventual descompasso entre projeto e obra, que pode extrapolar os parâmetros legais e projetuais, impedindo sua utilização. Nessa hipótese, caberia, além da multa fixada com base na metragem quadrada de área irregular, “a mais drástica das sanções de polícia administrativa” (Hely Lopes Meirelles) que é a demolição compulsória (medida administrativa) ou o recurso ao Judiciário via ação demolitória ou ação de obrigação de desfazer – implicando “riduzione in pristino” (Mengoli).

O condicional destacado é importante porque na prática poucas são as Prefeituras que tomam tais iniciativas. Normalmente elas assumem os interesses dos proprietários, via leis de regularização, sob o argumento do incremento da arrecadação de IPTU haja vista a...

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