O controle sociojurídico da sexualidade

AutorPâmela Copetti Ghisleni - Doglas Cesar Lucas - André Leonardo Copetti Santos
CargoFaculdade CNEC Santo Ângelo (CNEC), Santo Ângelo, RS, Brasil - Faculdade CNEC Santo Ângelo (CNEC), Santo Ângelo, RS, Brasil - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo (URI Santo Ângelo), Santo Ângelo, RS, Brasil
Páginas9-45
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Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
O CONTROLE SOCIOJURÍDICO DA SEXUALIDADE
THE SOCIO-JURIDICAL CONTROL OF SEXUALITY
Pâmela Copetti GhisleniI
Doglas Cesar LucasII
André Leonardo Copetti SantosIII
Resumo: As relações interpessoais no mundo contemporâneo
impõem uma inversão radical em relação às vivências das sociedades
tradicionais. Neste cenário – de novas formas de construção de
subjetividades, autenticidades e mesmo de pertença– ganham
fôlego as chamadas “práticas eróticas não convencionais”. Este texto
pretende, a partir do emprego da fenomenologia hermenêutica,
trazer reexões acerca das incoerências das narrativas jurídicas sobre
aquelas “experiências-limite”, a m de demonstrar que tais práticas
denitivamente colocam em xeque a forma como o Direito pensa,
(re)produz e gesta a regulação do sexo e da sexualidade.
Palavras-chave: Controle Social. Direito. Sexualidade. Tolerância.
Violação.
Abstract: e interpersonal relations in the world impose a radical
inversion in relation to the experiences of the matrices. In this
scenario - new forms of construction of subjectivities, authenticity and
belonging - gain breath as so-called “unconventional erotic practices”.
is text intends, from the use of hermeneutic phenomenology, to
reect on the incoherencies of legal narratives about the same limit
experiences, in order to show that they are put in check as a form of
the law thinks, (re) produce and gestates the regulation of the sex and
sexuality.
Keywords: Social Control. Law. Sexuality. Tolerance. Violation.
DOI: http://dx.doi.
org/10.31512/rdj.v20i37.24
Recebido em: 14.05.2019
Aceito em: 20.02.2020
I Faculdade CNEC Santo
Ângelo (CNEC), Santo Ângelo,
RS, Brasil. Mestre em Direito.
E-mail: pcghisleni@gmail.com
II Faculdade CNEC Santo
Ângelo (CNEC), Santo Ângelo,
RS, Brasil. Universidade
Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ), Ijuí, RS, Brasil.
Pós-Doutor em Direito. E-mail:
doglasl@unijui.edu.br
III Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - Santo Ângelo (URI
Santo Ângelo), Santo Ângelo,
RS, Brasil. Universidade
Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ), Ijuí, RS, Brasil.
Pós-Doutor em Direito. E-mail:
andre.co.petti@hotmail.com
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RDJ Revista Direito e Justiça: Reexões Sociojurídicas
Santo Ângelo | v. 20 | n. 37 | p. 9-45 | maio/agos. 2020 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v20i37.24
1 Considerações iniciais
O erotismo abre um abismo. Querer iluminar suas profundezas exige ao mesmo tempo uma
grande resolução e uma calma lucidez, a consciência de tudo aquilo que uma intenção tão
contrária ao sono geral coloca em jogo: é certamente o mais horrível, e é também é mais
sagrado (Georges Bataille).
Se as sociedades tradicionais convencionalizaram as relações interpessoais,
estabelecendo noções existenciais estritamente sedentárias e não raro utilitaristas, o mundo
contemporâneo apresenta-se, em toda sua uidez e efemeridade, como uma ruptura
radical em termos de afeto, desejo e sexualidade. Tais categorias, agora reinventadas,
ressignicam também as percepção acerca do que seja dor, violência, agressão e, ao m
e ao cabo, prazer. Inobstante, aqueles temas até então afetados pela cena jurídica apenas
esporadicamente, começam a demandar um lugar no ordenamento jurídico, o que fazem
a partir de um movimento vacilante e paradoxal que, por um lado, reivindica sejam
positivadas certas posições jurídicas e, por outro, clama por não interferência.
Prostituição, sadomasoquismo, pornograa (e sobretudo o polêmico pornô
bizarro), sex toys e as boutiques eróticas, swing, spanking, voyeurismo, ménage à trois1: na
discussão que envolve sujeitos autônomos e capazes, como não cruzar a “linha vermelha”
do sexo são, seguro e consensual? Em um mundo que catalisou as individualidades
humanas ao extremo, há, de fato, uma “linha vermelha” em comum? E mais – e aqui
reside a principal problemática a ser abordada neste estudo – o Direito e seus horizontes
epistemológicos são capazes de narrar tais questões a partir da lógica jurídica tradicional?
Nesse sentido, este texto pretende trazer reexões acerca das incoerências das
narrativas jurídicas contemporâneas em torno do chamado erotismo não convencional,
a m de demonstrar que as práticas-limite denitivamente colocam em xeque a forma
como o Direito pensa, (re)produz e gesta a regulação do sexo e de tudo o que está no seu
entorno.
Para desenvolvimento da pesquisa, utilizar-se-á o método da fenomenologia
hermenêutica. Far-se-á, portanto, revisão crítico-reexiva dos temas transmitidos pela
tradição losóca por meio da linguagem (STRECK, 2014), horizonte metodológico
mais adequado à discussão da temática objeto deste artigo.
Deixar e fazer ver a apropriação do sexo e da sexualidade pelo discurso jurídico por
si mesma, tal como se mostra a partir de si própria, requer uma metodologia que permita
1 A innitude de práticas eróticas não convencionais impossibilita que tais temas sejam trabalhados de forma
melindrosamente categorizada. Por isso, todas estas abordagens serão aqui denominadas sob a alcunha
de erotismo não convencional, subversivo ou transgressor. Ainda, não se pode deixar de incluir nesse rol a
sexualidade que foge do padrão heteronormativo, a exemplo daquela dos gays, lésbicas e bissexuais, pois muito
embora o mundo contemporâneo já esteja, em certa medida, mais habituado à discussão, ainda são muitos os
entraves que a população LGBTI tem enfrentado.
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Controle Sociojurídico da Sexualidade
Pâmela Copetti Ghisleni | Doglas Cesar Lucas | André Leonardo Copetti Santos
RDJ
tal aproximação ao fenômeno, de modo que seja possível a ele demonstrar-se diretamente
e não a partir de postulados de outros fenômenos ou doutrinas tradicionais. A proposta de
trabalho busca não a abordagem dessa apropriação discursiva em particular, mas aspectos
do seu ser, os quais embora se mostrem de forma implícita e “não-tematizada”, podem
chegar a mostrar-se tematicamente. Para tal desiderato, o método fenomenológico faz-
se não somente adequado, mas fundamentalmente necessário, especialmente porque
o elemento principal de análise a ser abordado – o assenhoramento do desejo pelo
Direito – está velado tanto pela sua proximidade e familiaridade em nosso cotidiano
(o que faz com que nem notemos e nos pré-ocupemos com tal aspecto) quanto pelo
fato de ele estar enterrado sob conceitos e doutrinas hauridas a partir de um pensar
calculador jurídico que impede uma reexão meditativa a respeito dos limites do poder
do Direito estatal em relação a este campo fenomênico. Assim, a partir da fenomenologia
hermenêutica, buscar-se-á construir o signicado da (i)legitimação democrática dessa
apropriação normativa do sexo e da sexualidade, cuja interpretação está obscurecida
pelos pré-conceitos de interpretações passadas assentadas sobre doutrinas dogmáticas
tradicionais. Trata-se, por esta perspectiva metodológica, de tentar alcançar o maior
grau possível de reexividade sobre o “lugar” desde onde se enuncia esse discurso
apropriativo. Uma pequena reconstrução histórica é parte da estratégia argumentativa.
Trata-se de uma destruição ontológica (Heidegger), de uma des-construção discursiva
(Derrida), de uma re-construção epistemológica (Habermas) desde os vencidos, desde as
vítimas, principalmente de um Direito da Modernidade que sempre teve a pretensão de
racionalidade, mas em termos de sexo, desejo, sexualidade, sempre foi corroído por pré-
conceitos absolutamente irracionais.
2 Calar, controlar, transgredir: sexo e sexualidade entre a cruz e a espada
Modos de vestir, de comer, de dormir, de existir. Para todas as minúsculas
trivialidades da vida são construídas racionalizações de relevante complexidade simbólica.
Não se pode negar, no entanto, que as ponderações relativas aos “modos sexuais” são, não
raras vezes, ainda mais labirínticas e difíceis de administrar. Mas por que estabelecemos
para a sexualidade humana normas morais que parecem receber (e efetivamente recebem)
tanta atenção? (FOUCAULT, 2012). De que estruturas (in)conscientes e elaborações
culturais estamos falando quando pensamos nos modos de amar e desejar que nós, enquanto
espécie humana, inventamos? Questionamentos dessa ordem traduzem a inquietação dos
muitos autores que a partir do século XX se debruçaram na difícil empreitada de (tentar)
descortinar o poder no contexto da sexualidade humana. Com efeito, muito mais do
que um comportamento (também) animal, a atividade sexual humana tornou-se um ato
simbólico que envolve questões outras, tendo cada vez menos vinculação com o esforço
meramente reprodutivo, o que signica dizer que “apenas os homens zeram de sua

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