A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a promoção do acesso à justiça

AutorCláudio Ladeira de Oliveira; Erika Maeoka
Páginas229-253

Cláudio Ladeira de Oliveira. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: claudioladeira@ig.com.br.

Erika Maeoka. Mestranda em Direito Negocial e Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ekmk2005@yahoo.com.br.

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Introdução

Os direitos humanos, seja qual for sua justificativa teórica, estejam eles positivados em Constituições ou tratados internacionais, objetivam proteger os indivíduos contra as potenciais arbitrariedades do poder Estatal. Seguramente esta não é sua única dimensão, uma vez que a proteção pode eventualmente ser dirigida também contra entidades privadas, por exemplo. No entanto, este é seu sentido "mínimo". Proteger uma esfera elementar de dignidade humana dos cidadãos sujeitos ao poder Estatal soberano. Por outro lado, não é possível implementar os direitos humanos sem a firme atuação de instituições políticasPage 230 organizadas, dotadas de aparato coercitivo, tribunais, recursos administrativos, capacidade de implementação de políticas públicas etc. Ou seja, a efetividade dos direitos humanos requer Estados organizados e capazes de atuar, ou ao menos entidades cujo poder efetivo depende diretamente de tais estados.

No âmbito do direito internacional uma importante instituição destinada à promoção dos direitos humanos no continente americano é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual possui competência – estabelecida pelos Estados-membro – para interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos. E dentre os direitos nela estabelecidos encontram-se os seguintes:

Artigo 8º - Garantias judiciais

1 – Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Artigo 25º - Proteção judicial

  1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

  2. Os Estados Partes comprometem-se:

  1. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

  2. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

  3. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Tais dispositivos não são estranhos à nossa Constituição, a qual estabelece no art. 5º, XXX, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". Trata-se do problema elementar do "acesso à justiça", "o modo pelo qual os direitos se tornam efetivos" (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12). No entanto, como ocorre com a interpretação dos direitos humanos em geral, também a amplitude do direito ao "acesso à justiça" é objeto de inúmeras controvérsias. Por exemplo, as rigorosas exigências de um sistema democrático (liberdade de expressão, igualdade política, liberdade de associação) podem exigir uma concretização mais "agressiva" e "ousada" do direito ao "acesso à justiça". Em outras palavras, é possível que uma versão excessivamente "formal" de acesso à justiça (possibilidade de acesso formal a um processo judicial e direito à sentença de mérito) acoberte o risco de tornar-se mera proclamação solene e vazia se não há a efetiva possibilidade de concretização judicial de direitos fundamentais:

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[...] Uma evolução adequada do sistema de distribuição de justiça equivaleria à predisposição de procedimentos adequados à tutela dos novos direitos. A inércia do legislador – ao menos para dar tutela efetiva às novas situações carentes de tutela – conduz a uma interessante e generosa posição doutrinária: a do direito à adequada tutela jurisdicional. O direito do acesso à justiça tem como corolário

o direito à pré-ordenação de procedimentos adequados à tutela dos direitos [...]. (MARINONI, 1994, p. 7).

O presente artigo analisa tais problemas a partir da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

1 A internacionalização dos Direitos Humanos e a justiça internacional

As inomináveis atrocidades praticadas durante a Segunda Guerra Mundial despertaram a consciência da humanidade para a necessidade de refrear esses assassinatos em massa e de se preocupar com a regulamentação dos Direitos Humanos, por meio do qual surgiu o processo de fortalecimento da internacionalização dos Direito Humanos. Piovesan (2003, p. 92) registra que "em face do regime de terror, passa a imperar a lógica da destruição, na qual as pessoas são consideradas descartáveis, em razão de não-pertinência a determinada raça: a chamada raça ariana". Em razão disso, 18 milhões de pessoas foram enviadas aos campos de concentração, sendo que 11 milhões não sobreviveram e contabilizam-se que nesse universo 6 milhões eram judeus. (PIOVESAN, 2003).

É verdade que formulações teóricas sobre os direitos humanos eram há muito disponíveis no contexto do pensamento jusnaturalista, e também haviam instrumentos jurídicos internacionais que objetivavam garantir alguma proteção a aspectos da dignidade humana. No entanto, reação às barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial produziu um resultado institucionalmente inédito. A partir de então adquiriu relevância, de um modo que antes era impensável, a idéia de que a proteção dos Direitos Humanos deve transcender os limites jurisdicionais dos Estados. Nesse sentido, Piovesan (2000)1 assinala que a proteção dos direitos humanos "não deve se restringir, confinar-se às muralhas, à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse da comunidade internacional". FoiPage 232 nesse período que, com a Declaração Universal de 1948, os direitos humanos se consolidaram no cenário internacional.

Com o advento do processo de internacionalização dos Direitos Humanos o sistema jurisdicional não se limita mais à circunscrição dos limites territoriais dos Estados. Portanto, é preciso lembrar que há, além dessa esfera, o sistema jurisdicional internacional e, dentro desta estrutura, está disposta uma ramificação do Direito Internacional, que postula a proteção internacional dos Direitos Humanos, por intermédio de uma jurisdição internacional atribuída às Cortes Internacionais.

No âmbito das Américas, a Organização dos Estados da América desenvolveu um sistema de proteção dos direitos humanos composto por dois órgãos de fiscalização: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.2 A jurisdição internacional de proteção dos Direitos Humanos é exercida pela Corte Interamericana, que tem a sua competência delimitada para julgar a responsabilidade internacional dos Estados que aceitaram a sua jurisdição. A Convenção Americana de Direitos Humanos ou pacto de São José da Costa Rica foi o primeiro documento firmado, em 22 de novembro 1969, no qual se consolidou a proteção dos direitos humanos civis e políticos3. Posteriormente, por meio de um protocolo adicional, pelo Tratado de São Salvador, foi normatizada, em 17 de novembro de 1988, a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, que constituem os Tratados mais relevantes de proteção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema Interamericano.4

A apreciação dos casos levados às Cortes Internacionais depende da observância do princípio da subsidiariedade ou complementariedade que, conforme Ramos (2005, p. 118), "significa apenas que o próprio Estado, primeiramente por meio de seus recursos internos, deve assegurar o respeito aos direitos humanos". Explica Ramos (2005, p. 118-9) que somente "após, no fracasso de tais meios internos, pode a vítima aceder aos mecanismos internacionais"Page 233 que remete ao requisito do prévio esgotamento das vias judiciais internas para a interposição das demandas internacionais. Como sugere Piovesan (2006, p. 282) "a sistemática internacional só pode ser invocada quando o Estado se mostrar omisso ou falho na tarefa de proteger os direitos fundamentais."

Assim, o acesso à justiça internacional pressupõe o prévio esgotamento dos recursos internos. Conforme esclarece Lesdema (2007, p. 1), o Sistema Internacional de Proteção opera "sólo después de haber hecho uso de los recursos jurisdiccionales locales, sin haber obtenido un remedio para la violación que se alega". Isto significa que, "el sistema interamericano de protección de los derechos humanos es subsidiario, en el sentido de que debe permitir, en primer lugar, que el propio Estado pueda adoptar las medidas correctivas que sean necesarias" (LESDEMA, 2007, p. 1). Contudo, salienta Lesdema (2007, p. 1) que a regra do prévio esgotamento dos recursos internos implica:

[...] una obligación paralela para los Estados, en cuanto supone la existencia de un aparato judicial que funcione, y que contempla recursos apropriados para proteger a las personas en el ejercicio de sus derechos humanos, es la inexistencia de recursos internos efectivos lo que coloca la víctima en estado de indefensión, y lo que justifica la protección internacional.

Toro Huerta (2005) atenta para os desafios do Poder Judiciário diante da...

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