Crítica à sub-representação de mulheres negras no legislativo federal: colonialidade, silêncio e incômodo/Criticism to the sub-representation of black women in the federal legislative: coloniality, silence and uncomfortable.

AutorSouza, Jonadson Silva

1 Introdução

A carta política de 1824, primeira Constituição imperial do Brasil, foi o marco inicial do processo eleitoral e da aquisição do direito ao voto. Os artigos 90 a 97 do texto constitucional, mais especificamente o artigo 91, garantiam aos cidadãos brasileiros, em pleno gozo dos seus direitos políticos e aos estrangeiros naturalizados, o direito à participação eleitoral.

Na Carta Magna de 1891 não há disposição sobre direitos eleitorais de mulheres, no entanto, o debate sobre a possibilidade de extensão do voto às mulheres foi intenso na Constituinte de 1890. Durante a República Velha, compreendida entre 1889 e 1930, abriu-se margem para interpretações inovadoras a época, posto que, como ensina Porto (2002), a Constituição não usava expressamente termos que proibissem o voto feminino em seu art. 70. Ademais, houve movimento de inovação especificamente no que se refere o art. 69, que dispunha sobre os requisitos para ser cidadão brasileiro e ter direito a voto.

Já no início do século XIX, diversos foram os projetos legislativos que buscavam a reformulação do sistema eleitoral brasileiro. Uma dessas mudanças se referia a concessão do direito ao voto às mulheres, porém, nenhum projeto aprovado. No século XX, no entanto, os movimentos sufragistas e feministas ganharam notoriedade no cenário nacional.

Em 1910, a educadora baiana Leolinda Daltro inaugurou o Partido Republicano Feminino e 12 (doze) anos mais tarde, Bertha Lutz fundou a Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino. Essas agremiações posicionavam-se firmemente junto ao governo lutando por direitos às mulheres, sendo o voto uma destas reivindicações (MIGUEL, 2000).

Com o advento da Revolução de 1930, o voto feminino se tornou assunto de debate no país, embora não fosse pauta da revolução (CARVALHO, 2011). Contudo, somente em 1932, com expressivos movimentos organizados em prol da emancipação política feminina, entrou em vigor o Código Eleitoral, Decreto n 21.076 de 24 de fevereiro de 1932, que expressamente concedeu o direito ao voto às mulheres. No final do processo de elaboração da nova legislação eleitoral, foram eliminados os limites e atribuído ao sufrágio feminino as mesmas condições do sufrágio masculino. Ficou disposto no art.2 que "É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste código".

A Carta Política de 1934, no que se referia aos direitos políticos, repetiu as normas já dispostas no Código Eleitoral de 1932, mantendo o direito ao sufrágio secreto e feminino (DIAS, 2011; SAMPAIO, 2011). Sem olvidar da existência das Constituições de 1937, 1946, 1967 e a atual, 1988, importa aludir que a conquista de direitos políticos pelas mulheres brasileiras se deu paulatinamente ao longo da história. Contudo, os impedimentos que marcam esse retardamento dos direitos políticos femininos se relacionam com aspectos interseccionais que atravessam as mulheres.

Pereira (2017) diz que no Brasil a questão da parca participação eleitoral feminina está intrinsecamente ligada a fatores históricos, econômicos, sociais e culturais, e se analisados juntos, demonstram que no Brasil a maioria das mulheres é interseccionalizada. As mulheres não tinham permissão legal para dispor de bens, estando sempre submissas às vontades do pai, marido e irmão. Neste contexto, é imprescindível adentrar a questão racial, que historicamente estruturou a sociedade para que pessoas pretas não pudessem adquirir propriedades, dificultando que se firmassem como aptas a usufruir de seus direitos políticos. Nessa esteira, as mulheres pretas eram subjugadas pela raça, pelo gênero e pelas funções que desempenhavam dentro das estruturas sociais (KILOMBA, 2019).

Bourdieu (2020) ensina que os arranjos sociais trabalham como uma grande máquina simbólica que tem como objetivo a dominação masculina. A partir do constructo da colonialidade e capitalismo, a dominação masculina se mantem forte, os ornamentos sociais favorecem os homens e inviabilizam o acesso de diversos grupos historicamente vulnerabilizados na arena política. Mulheres de modo geral, mulheres racializadas, população LGBTIQIA+, indígenas, todos são sumariamente descartados dos pleitos eleitorais, uma vez que são vítimas da estrutura social que se mostra intocada há séculos (MIGUEL, 2014).

Partindo desta problemática, os dados estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral TSE (2019) demonstram que, em que pese a população feminina seja 52,5% do eleitorado, este grupo ocupa o percentual de 15,01% das vagas das cadeiras da Câmara dos Deputados. No que se refere a mulheres negras ocupantes de cargos de deputada, os dados são mais preocupantes, uma vez que perfazem um percentual de 2,5 % de ocupação dos cargos de parlamentar federal. Essa informação se torna ainda mais precária quando sabemos que, hoje, pessoas pretas representam 55,8% da população brasileira (IBGE, 2021).

A sub-representatividade de mulheres negras no legislativo federal brasileiro confirma a imprescindibilidade em se analisar criticamente a situação dos arranjos institucionais públicos enquanto sintomas da colonialidade. Tais arranjos refletem na estrutura social brasileira e dissecar o porquê dos incômodos provocados pelo posicionamento da mulher negra por meio da sua fala e seu questionamento no espaço público é meio para a transformação social.

Portanto, o objeto do trabalho diz respeito à discussão acerca da problemática da sub-representação de mulheres negras nos espaços de tomada de decisão no legislativo federal brasileiro. Ademais, discute-se neste trabalho como a colonialidade se apresenta como fator determinante para que raça e gênero sejam elementos manejados decisivamente para excluir mulheres negras dos espaços em que suas falas e questionamentos têm poder de mudança e provocam incômodo.

A metodologia da pesquisa quanto à finalidade será pura ou teórica, pois tem como objetivo, nas palavras de Loureiro (2018), verificar por que determinado fenômeno ocorre e aprofundar conhecimentos acerca dele.

Quanto aos objetivos, a investigação se delineará nas modalidades descritiva e exploratória. Assim, o intuito é descrever fatos e fenômenos da realidade que serão investigados (TRIVIÑOS, 1987 apud GERHARDT; SILVEIRA, 2009), mas também promover maior familiaridade com o tema para que seja possível a elaboração de hipóteses que respondam o problema proposto. Para tanto será realizado levantamento bibliográfico.

Quanto à abordagem, a pesquisa será qualitativa a fim de aprofundar a compreensão sobre colonialidade, gênero, raça e sua relação com o acesso ao Poder Legislativo Federal por mulheres negras. No tocante aos procedimentos, a pesquisa será bibliográfica, por meio de análise de produções acadêmicas já analisadas e publicadas, e documental, posto que se utilizará de fontes mais diversificadas como entrevistas, legislações e relatórios.

2 A estrutura política da colonialidade do poder

A estrutura política colonial está intimamente ligada ao poder que o homem branco, heterossexual, cristão e pertencente às classes dominantes possui de criar a categoria do "outro". Quijano (2009) configura a colonialidade como um dos elementos basais do padrão mundial do poder capitalista, caracterizando-se por sustentar uma ordem classificatória através de um padrão racial/étnico que opera nas mais diversas dimensões da vida humana, intervindo na existência social cotidiana como uma derivação do colonialismo originado e originário da América Latina, invadida e explorada pelo povo europeu a partir do marco de 1492, ano da chegada de Cristóvão Colombo ao continente.

O colonialismo é parte essencial do desenvolvimento do capitalismo moderno. A invasão de um continente inteiramente novo para o Ocidente foi, em acordo com Dussel (1992), um encontro com o desconhecido, com o "outro" que passou a ser matéria onde se projetam os padrões do europeu. A experiência europeia é de abertura de horizontes e conquista, estabelecendo-se uma relação política de dominação, controle de corpos e violência para a tomada do território. Há neste processo uma ruptura com a Europa Medieval, cuja constituição era de território dependente do mar Mediterrâneo para a realização de trocas comerciais inter-regionais.

Dussel (2012) compreende que a conexão econômica e cultural planetária propiciada pela anexação da Ameríndia à Europa foi essencial para o desenvolvimento de vantagens econômicas que garantiram à Europa uma superioridade inexistente até o final do século XV. Quijano (2009) completa este entendimento ao apontar que o então emergente poder capitalista se torna mundial desde o processo colonial, compondo-se os seus centros hegemônicos as zonas aportadas no continente europeu.

À dominação de um povo sobre o outro com o intuito de tomar território e explorá-lo através do controle por autoridade política, recursos de produção, trabalho e imposição de uma identidade cultural, dá-se o nome "Colonialismo", cujas remontagens históricas são anteriores à formação ocidental da América (QUIJANO, 2009). A colonialidade, por sua vez, é um marco americano, um padrão de poder nascido do colonialismo, mas não limitado à formalidade das relações de poder, inserindo-se no comportamento do mercado, do conhecimento, da autoridade, das relações intersubjetivas como uma herança da racionalidade subjugadora que sobrevive ao período colonial. (MALDONADO TORRES, 2008).

Na contemporaneidade, na esteira de Quijano (2000) a colonialidade se expressa na contemporaneidade por meio da globalização, cuja estrutura financeira, produtiva e comercial integrada e de caráter neoliberal é uma "universalização da civilização capitalista" que esconde o seu caráter instrumental de manutenção da situação de dominação de povos anteriormente colonizados. Para o autor, a globalização é fragmentária, em lugar de ser integradora, pois permite a concentração de poder político, força militar e recursos de produção às culturas historicamente dominantes.

A colonialidade mantém relações de poder...

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