Crime organizado e a tutela penal do branqueamento de capitais: um estudo crítico a partir do direito penal do bem jurídico

AutorFillipe Azevedo Rodrigues/Liliana Bastos Pereira Santo de Azevêdo Rodrigues
Ocupação do AutorAdvogado, Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)/Advogada no Brasil e em Portugal, Doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Mestre em Ciências ...
Páginas1-32
1
CRIME ORGANIZADO E A TUTELA PENAL
DO BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS:
UM ESTUDO CRÍTICO A PARTIR DO
DIREITO PENAL DO BEM JURÍDICO
1.1 INTRODUÇÃO
O crime organizado não é novidade no mundo contemporâneo, entretan-
to o seu processo de formação remonta há tempos, sempre na exploração de
mercados ilícitos nacionais e internacionais.
Sem embargo, as operações de tais empreendimentos criminosos nunca
se restringiram apenas a áreas ilícitas, mas operavam também em campos
legítimos de exploração econômica, de modo que a ponte entre as atividades
lícitas e ilícitas dependia necessariamente do emprego de ameaças, violência
e corrupção das instituições, verdadeiros segredos para o sucesso do negócio.
Os métodos violentos aplicados por tais organizações e a corrupção
eram mais comuns outrora, porquanto a rentabilidade da atividade não po-
deria ser garantida por meio de contratos exequíveis legalmente. A corrup-
ção, particularmente, representava – e ainda hoje representa – um elevado
custo para as organizações criminosas.
A fruição das rendas do crime, desde sempre, consistiu no rastro mais
evidente devido ao qual os agentes estatais corrompidos identicavam as
atividades ilícitas perpetradas por essas organizações e, assim, cobravam
sua parcela para permitir a continuidade da operação.
Importantes mecanismos para reduzir o elevado custo da corrupção
passaram a ser utilizados com maior frequência, quais sejam, o complexo
sistema nanceiro e, até mesmo, os mercados mais rudimentares como a
criação de empresas de fachada para explorar o comércio simples. O método
do branqueamento de capitais surge como alternativa para fruição dos ren-
dimentos do crime, imune à corrupção sub-reptícia dos agentes de polícia
especializados no combate às drogas, por exemplo.
LAVAGEM DINHEIRO_FILIPE.indb 1 15/07/2016 11:52:08
2
lavagem de dinheiro e crime organizado: diálogos entre brasil e portugal
fillipe azevedo rodrigues / liliana bastos pereira santo de azevedo rodrigues
Em síntese, operou-se uma verdadeira revolução no crime organizado,
cujo principal traço foi justamente o aperfeiçoamento dos métodos de frui-
ção dos rendimentos em larga escala, mediante o branqueamento.
A delinquência organizada consolidou o seu processo de internaciona-
lização, ao passo que a economia global se integrou e o sistema nanceiro
passou a ser o mecanismo de transação de valores com a velocidade neces-
sária para ocultar a origem de rendas ilícitas.
Em resposta, presenciou-se a expansão da política criminal do mundo
ocidental no combate às organizações criminosas, mais precisamente no
que se refere à lavagem de capitais. A criminalização de tal conduta decor-
reu de tratados internacionais, a exemplo da Convenção de Viena contra
o Tráco Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 20 de
dezembro de 1988.
Todavia, a mencionada expansão das medidas penais anti-branquea-
mento não se deu com a racionalização jurídico-constitucional necessária,
sobretudo na sucessão de alterações legislativas que desnaturaram a essên-
cia do delito, relacionada com a criminalidade organizada, tal como ocorreu
nas leis penais portuguesa e brasileira, que ampliaram indiscriminadamente
o rol de crimes precedentes.
Denida a problemática em análise, o presente trabalho será desenvol-
vido utilizando-se do método dedutivo-analítico, por meio de pesquisa bi-
bliográca na legislação, bem como em obras acadêmicas consagradas e
de vanguarda. No tocante aos objetivos, propõe-se analisar a incriminação
do branqueamento de capitais, com ênfase para os ordenamentos jurídicos
português e brasileiro, sem descurar das demais experiências estrangeiras;
discutir a denição do bem jurídico protegido com a incriminação da la-
vagem de dinheiro, questionando-se sua tipicação autônoma e seu estudo
atrelado ao Direito Penal Econômico; e, por m, suscitar a intrínseca cor-
relação existente entre o crime organizado e o branqueamento de capitais,
a partir da ideia de comparticipação necessária (plurissubjetividade), com
vistas à promoção de uma revisão legislativa mais atenta aos fundamentos
de um Estado Democrático de Direito.
Para tanto, a pesquisa parte da contextualização do tema, no âmbito do
cenário contemporâneo, com destaque para a referência a conceitos de so-
ciedade de risco e sociedade complexa, relevantes nas ciências sociais cor-
relatas. A seguir, alguns dados importantes sobre a lavagem de dinheiros e
o crime organizado em vários países são levantados a m de situar o debate
além da realidade luso-brasileira, conforme o tema exige.
LAVAGEM DINHEIRO_FILIPE.indb 2 15/07/2016 11:52:09
1
crime organizado e a tutela penal do branqueamento de capitais: um estudo crítico...
3
Em um momento posterior, o trabalho passa a abordar a indenição
do bem jurídico protegido pelo delito de branqueamento de capitais e sua
incompatibilidade com o Direito Penal Econômico, denindo o arcabouço
teó rico utilizado na defesa de um Direito Penal do bem jurídico e, em segui-
da, enfrentando a questão em seus pormenores.
Por m, sob o enfoque doutrinário e jurisprudencial pertinente, serão
propostas algumas linhas de revisão legislativa ao reconhecer-se a depen-
dência do branqueamento de capitais aos tipos de associação crimino-
sa tanto nos casos brasileiro como português, devido à comparticipação
(ou plurissubjetividade) necessária da conduta.
1.2 SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E BRANQUEAMENTO DE
CAPITAIS
O branqueamento de capitais é um fenômeno típico da sociedade de
risco1 contemporânea,2 relacionado com o avanço do processo de globaliza-
ção econômico-cultural,3 bem como com o crescimento paralelo do crime
organizado, sobretudo ao longo do século XX.4
1 Emerge o conceito de sociedade de risco, cunhado por Ulrich Beck, que pode ser traduzido “como
uma época em que os aspectos negativos do progresso determinam cada vez mais a natureza das
controvérsias que animam a sociedade”. (BECK, 2010, p. 229).
2 Acerca da complexidade social, Luhmann descreve a consolidação de um sistema social global
a partir de um conjunto de subsistemas, per se, deveras segmentados e complexos. Observe-se:
Bajo condiciones modernas, el sistema global es una sociedad, en donde todos lós límites internos
pueden ser disputados y las solidaridades cambiadas. Todos lós límites interiores dependen de la
autoorganización de los subsistemas y ya no más en un “origen” en la historia o en la naturaleza o
en la lógica del suprasistema”. (LUHMANN, 1997, p. 10).
3 “O processo de globalização é irreversível, com base em uma série de argumentos, entre os quais,
destacam-se: (i) conexão global dos mercados nanceiros e crescimento das empresas transnacio-
nais; (ii) constante e célere evolução dos meios tecnológicos, com destaque para os que aceleram a
propagação da informação; (iii) discurso globalizado e impositivo dos direitos humanos; (iv) ques-
tões como pobreza discutidas como de responsabilidade de todas as nações; e (v) vertiginoso au-
mento quantitativo e de inuência de entidades não governamentais no âmbito internacional. Outro
fato social amplicado pela globalização e que lhe serve de evidência, sem dúvida, é a criminalidade
transnacional, sobretudo aquela enveredada por organizações criminosas”. (RODRIGUES e SILVA,
2013, p. 344).
4 Essa insegurança sistêmica é própria da sociedade contemporânea globalizada e, por consequência,
fomenta conitos sociais, econômicos, políticos e jurídicos de uma nova ordem, cujos agentes legi-
timados para encará-los nem sempre estão preparados a fornecer a solução mais racional. Evidencia-
se, destarte, o que Zuleta Puceiro (in FARIA, 2010, p. 108) descreve como “um trânsito acelerado
em direção a um novo quadro de relações entre Estado, sociedade e o mercado em que as mudanças
culturais e as demandas sociais adiantaram-se às estratégias dos dirigentes”. Samuel Huntington
(1996, p. 157), por sua vez, destaca a pluralidade de protagonistas na ordem mundial vigente, cada
vez mais complexa e heterogênea, como nunca dantes
LAVAGEM DINHEIRO_FILIPE.indb 3 15/07/2016 11:52:09

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT