Criminalidade organizada no Brasil e em Portugal: questões penais e processuais penais

AutorFillipe Azevedo Rodrigues/Liliana Bastos Pereira Santo de Azevêdo Rodrigues
Ocupação do AutorAdvogado, Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)/Advogada no Brasil e em Portugal, Doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Mestre em Ciências ...
Páginas33-70
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CRIMINALIDADE ORGANIZADA NO
BRASIL E EM PORTUGAL: QUESTÕES
PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS
2.1 INTRODUÇÃO
A busca por um conceito cientíco de criminalidade organizada ainda
intriga muito os criminólogos e juristas atualmente. Até porque, relevante par-
cela da doutrina, entende não haver como propor um signicado preciso para
o termo, ao considerá-lo inexistente como categoria criminógena autônoma.
Tratar-se-ia, então, de mais uma forma mutável e circunstancial de
manifestação do fenômeno social criminoso comum, relacionado com as
mazelas sociais, os bolsões de pobreza e a existência de grande parcela da
sociedade contemporânea sem acesso a condições de vida dignas.
Para além disso, nos ambientes mais desenvolvidos, a proliferação do
crime nesses termos se deveria à globalização econômica e à interação dos
povos, sobretudo com o avanço das tecnologias de informação e da queda
das fronteiras comerciais e nanceiras, o que promoveu a sosticação tanto
da criminalidade quanto das relações sociais triviais.
O fato inconteste, entretanto, é a desarrazoada expansão das medidas de
repressão à criminalidade organizada, em que pese não se saber ao certo o
objeto de tamanha reprimenda estatal. Avanço do jus puniendi que não po-
deria levar a outro cenário senão ao de uma massiva relativização de direitos
e garantias fundamentais sob o argumento de preservação da integridade do
Estado e da segurança geral.
A política criminal do inimigo – crime organizado – dissemina-se, cada
vez mais, no Direito Penal e no Processo Penal, sendo que, neste, encontram-se
os novos métodos ocultos de investigação, verdadeira carta branca ao Estado
para invadir as esferas de intimidade e da vida privada dos cidadãos.
Fixada a problemática, desenvolver-se-á o método dedutivo-analítico, por
meio de pesquisa doutrinária e na legislação pertinente. Quanto aos objetivos,
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lavagem de dinheiro e crime organizado: diálogos entre brasil e portugal
fillipe azevedo rodrigues / liliana bastos pereira santo de azevedo rodrigues
propõe-se analisar as variadas tentativas de delimitar um conceito de crimina-
lidade organizada, com ênfase para os ordenamentos jurídicos português e
brasileiro; discutir as falhas e excessos da legislação luso-brasileira voltada
para o combate ao crime organizado; e, por m, suscitar a necessidade de se
impor limites aos novos métodos ocultos de investigação, típicos ao Direito
Penal do Inimigo e de elevado risco para os direitos e garantias fundamen-
tais, fundamentos de um Estado Democrático de Direito.
Assim, a pesquisa parte da contextualização do tema com destaque para
a referência a tentativas de denição do fenômeno criminalidade organiza-
da, relevante no âmbito jurídico e criminológico. A seguir, aponta algumas
questões importantes sobre a diculdade de se chegar a um conceito de cri-
me organizado e de como há um avanço de pesquisas e de normas jurídicas
versadas sobre o tema sem que haja ainda pleno conhecimento do que se
estar a tratar.
Em seguida, o trabalho passa a abordar a legislação brasileira e sua evo-
lução histórica no combate às organizações criminosas, demonstrando as
fragilidades desse sistema normativo até os dias de hoje. Faz o mesmo es-
tudo quanto ao ordenamento jurídico português, identicando problemas
distintos do caso brasileiro, porém igualmente graves ao se considerar o
avanço na relativização de direitos e garantias fundamentais em virtude do
combate à criminalidade organizada.
Ao nal, sob o enfoque doutrinário e jurisprudencial pertinente, propõe-se
a necessidade de rever a aplicação dos meios ocultos de obtenção de prova,
tanto no Brasil quanto em Portugal, a m de utilizá-los na repressão da cri-
minalidade realmente mais estruturada, não contaminando às demais áreas
do Direito Penal e do Processo Penal, típicos de um regime penal simbólico
e dirigido à gura do inimigo.
2.2 EM BUSCA DE UM CONCEITO DE CRIMINALIDADE
ORGANIZADA
As discussões jurídico-criminológicas quanto ao signicado de crimina-
lidade organizada tiveram lugar no contexto globalizado das sociedades
pós-industriais,1 sobretudo nos Estados Unidos da América da primeira
1 Importante mencionar, sobre o assunto, o que arma Jesús-María Silva Sánchez (2011, p. 103): “os
fenômenos econômicos da globalização e da integração econômica dão lugar à conformação de
modalidades novas de delitos clássicos, assim como a aparição de novas formas delitivas. (...) Gera
a aparição de uma nova concepção de objeto do delito, centrada em elementos tradicionalmente
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metade do Século XX, sob a denominação de organized crime, bem como
na doutrina italiana do crimine organizzato.2
Tais estudos retrocederam na história do delito3 para investigar uma sé-
rie de grupos criminosos e entidades de caráter ilícito cujas peculiaridades
fossem condizentes com a pretensa nova classicação criminógena. Nesse
sentido, João Davim (2007, p. 8-9) expõe que “é pacíco armar-se que a
criminalidade organizada não é um fenómeno novo já que as suas origens
se perdem no tempo”, entretanto faz ressalva quanto a seu desenvolvimento
e estudo, ocorridos ao longo do século passado, em meio ao processo de
globalização econômico-cultural.
Assim, segundo Eduardo Araújo da Silva (2003, p. 19-20), as primeiras
organizações a que se reputou a pretensa denição de criminalidade orga-
nizada foram as Máas italianas, a Yakuza japonesa e as Tríades chinesas,
todas originadas a partir do século XVII, como movimentos de “proteção
contra arbitrariedades praticadas pelos poderosos e pelo Estado, em relação
a pessoas que geralmente residiam em localidades rurais, menos desenvol-
vidas e desamparadas de assistência dos serviços públicos”. Outra caracte-
rística comum a elas é a simbiose entre as atividades ilícitas e a conivência
de autoridades públicas corruptas dessas regiões.
Entre elas, a mais antiga manifestação identicada pela criminologia
foram as chamadas Tríades chinesas, que consistiram em um movimento
popular contrário às investidas do império Ming, por volta de 1644. Após o
início da colonização britânica de territórios chineses, a exemplo de Honk
Kong, já em 1842, a vocação para a administração da produção e distribui-
ção do ópio assumiu a agenda das organizações, mediante o controle da
mão-de-obra campesina e das terras produtoras de papoula. Com a posterior
proibição do comércio do ópio, as Tríades chinesas passaram a monopolizar
o mercado ilícito da heroína e viveram seu apogeu (SILVA, 2003, p. 20).
alheios à ideia de delinqüência como fenômeno marginal; em particular, os elementos de organiza-
ção, transnacionalidade e poder econômico. Criminalidade organizada, criminalidade internacional
e criminalidade dos poderosos são, provavelmente, as expressões que melhor denem os traços
gerais da delinquência da globalização”.
2 “Existem dois discursos sobre crime organizado estruturados nos pólos americano e europeu do
sistema capitalista globalizado: o discurso americano sobre organized crime, denido como conspi-
ração nacional de etnias estrangeiras, e o discurso italiano sobre crimine orgaanizzato, que tem por
objeto de estudo orignial a Maa siciliana”. (SANTOS, 2003, p. 215).
3 A respeito da história do delito e do Direito Penal, veja-se a posição de José de Faria Costa (2010,
p. 10): “o direito penal é não só parte inafastável da história da humanidades como, ele próprio,
tem a sua história. Há, por conseguinte, uma diacronia da história, enquanto fenômeno e total que
tudo abarca – sem que para isso se precise de cair no historicismo – e há, outrossim, uma diacronia
especíca ou particular que pertence inteiramente ao direito penal”.
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