Critica, Coercao e Vida Sagrada na "Critica da Violencia" de Benjamin/Critique, Coercion and Sacred Life in Benjamin's 'Critique of Violence'.

AutorButler, Judith
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Eu gostaria de abordar a questão da violência, mais especificamente, a questão do que uma crítica da violência poderia ser. Que significado o termo crítica assume quando se torna uma crítica da violência? Uma crítica da violência é uma investigação sobre as condições para a violência, mas também um questionamento sobre como a violência é previamente delimitada pelas perguntas que fazemos acerca dela.

De que modo, então, podemos colocar a questão do que é a violência? Não precisamos saber como lidar com tal questão antes de perguntarmos, como devemos, quais são as formas legítimas e ilegítimas de violência?

Eu enxergo o ensaio "Crítica da Violência" de Benjamin, escrito em 1921, como uma crítica da violência do direito, o tipo de violência que o Estado exerce por instaurar e manter o status vinculante que o direito impõe sobre quem está a ele sujeito (1).

Quando Benjamin apresenta uma crítica, ele está oferecendo pelo menos dois tipos de considerações. Em primeiro lugar, ele questiona: como a violência do direito se torna possível? Que direito é esse que requer a violência ou, ao menos, um efeito coercitivo para tornar-se vinculante aos sujeitos? Além disso, que violência é essa que pode assumir essa forma jurídica? Quanto ä última questão, Benjamin inaugura uma segunda trajetória em seu pensamento: há alguma outra forma de violência que não seja coercitiva, uma violência que possa ser, de fato, invocada e travada contra a força coercitiva do direito? Ele vai mais longe e pergunta: há um tipo de violência que não apenas seja travada contra a coerção, mas que seja em si não coercitiva e, neste sentido, quando não em alguns outros, fundamentalmente não violenta? Ele se refere ä violência não-coercitiva como aquela em que "não há derramamento de sangue", e isso pareceria implicar que ela não é travada contra corpos e vidas humanas.

Como veremos, não fica totalmente claro se ele consegue cumprir esta promessa. Se ele pudesse, adotaria uma violência que destrói a coerção sem derramar sangue no processo. Isso constituiria a possibilidade paradoxal de uma violência não-violenta. A seguir, espero considerar essa possibilidade no ensaio de Benjamin.

O ensaio de Benjamin é notoriamente difícil. Temos que lidar com muitas distinções. Além disso, parece que as analisamos por alguns poucos momentos e depois as deixamos de lado. É preciso trabalhar com dois conjuntos de distinções para tentar entender o que o autor faz. O primeiro é a distinção entre a violência instauradora do direito (rechtsetzend) e a violência mantenedora do direito (rechtserhaltend).

A violência que mantém o direito é exercida pelos tribunais e, certamente, pela polícia. Ela representa esforços constantes e institucionalizados para garantir que o direito continue vinculando a população que governa; representa as maneiras cotidianas pelas quais o direito repetidamente impõe sua obrigação aos sujeitos.

A violência que instaura o direito é diferente. O direito é postulado como algo feito quando uma política surge e cria a lei, mas também pode ser uma prerrogativa exercida pelos militares na criação de ações coercitivas para lidar com uma população indisciplinada. Curiosamente, os militares podem ser um exemplo tanto do poder instaurador do direito quanto do poder que o mantém, a depender do contexto. Retornaremos a este ponto quando questionarmos se há, ainda, outra violência, uma terceira possibilidade de violência que exceda e se oponha tanto à violência instauradora quanto à mantenedora.

Porém, se nos concentrarmos na violência instauradora do direito, veremos que Benjamin demonstra claramente que o ato de impor o direito, de fazer a lei, é trabalho do destino. Os atos pelos quais o direito é instituído não são, em si mesmos, justificados por outro direito ou pelo recurso a uma justificativa racional prévia à codificação do direito. O direito também não é formado de maneira orgânica, através do lento desenvolvimento de costumes e normas morais em direito positivo. Ao contrário, o processo de instauração do direito cria as condições para que procedimentos de deliberação e fundamentação ocorram. Isso é feito, por assim dizer, através de decreto e faz parte do que se entende pela violência deste ato fundador.

Com efeito, a violência da violência instauradora do direito se resume à alegação de que "agora essa será a lei" ou, mais enfaticamente, "agora essa é a lei" (2). Esta última concepção de violência legal--a de instauração do direito--é entendida como uma operação do destino, termo que tem um significado específico para ele. O destino pertence ao reino helênico do mito e a violência mantenedora do direito é, de muitas maneiras, o subproduto desta violência instauradora, pois o direito que é mantido é justamente aquele que já foi instaurado.

O fato de que o direito só pode ser mantido pela reiteração de seu caráter vinculante sugere que ele é "preservado" apenas por ser afirmado repetidamente como vinculante. No fim, ao que parece, o modelo da violência instauradora do direito, entendido como destino--uma declaração por decreto--, é também o mecanismo de funcionamento da violência mantenedora do direito.

O fato de os militares serem o exemplo de uma instituição que tanto instaura quanto mantém o direito sugere que eles fornecem um modelo para compreender a ligação interna entre essas duas formas de violência. Para que o direito seja mantido, é preciso reafirmar seu caráter vinculante. Essa reafirmação vincula novamente o direito e, assim, repete o ato fundador de maneira regulamentada.

Além disso, podemos perceber que se o direito não se renovasse e não fosse mantido, poderia se tornar um conjunto de leis que não mais funcionaria, não mais se preservaria, não mais se tornaria vinculante. Uma vez que as forças militares parecem ser a instituição que exemplifica ao mesmo tempo a manutenção e a instauração do direito, seriam elas que reprimiriam o direito, fazendo cessar seu funcionamento e tornando-o sujeito à destruição.

Se quisermos entender a violência que atua tanto instaurando quanto mantendo o direito, devemos considerar uma outra violência, que não deve ser entendida nem pela noção de destino, nem pela ideia de "violência mítica" ou helénica.

A violência mítica estabelece o direito sem qualquer justificativa para tanto e, apenas depois de estabelecido o direito, podemos começar a falar de justificação. De maneira crucial, o direito é fundado sem justificação, sem qualquer referência à justificação, ainda que faça referência a uma possível justificação como consequência de sua fundação. Primeiro o sujeito é vinculado pelo direito e, em seguida, surge uma estrutura legal para justificar o caráter vinculativo do direito. Consequentemente, são produzidos sujeitos que são responsáveis para e perante o direito, tornando-se definidos por suas relações com a responsabilização legal.

Sobre e contra esse domínio do direito, tanto em sua instância instauradora, quanto em sua instância mantenedora, Benjamin postula uma "violência divina", que visa a própria estrutura que estabelece a responsabilização legal. A violência divina é desencadeada contra a força coercitiva dessa estrutura jurídica, contra a responsabilização que vincula um sujeito a um sistema legal específico e que o impede de desenvolver um ponto de vista crítico, e até revolucionário, sobre esse sistema.

Quando um sistema legal precisa ser desfeito ou quando sua coercitividade leva a uma revolta por parte daqueles que sofrem sob sua coação, é importante que aqueles vínculos de responsabilização sejam quebrados. Com efeito, fazer a coisa certa de acordo com o direito estabelecido é precisamente o que deve ser suspenso para dissolver um corpo de leis estabelecidas que são injustas.

Este é certamente o argumento de Georges Sorel em suas "Reflexões sobre a Violência" (3), que influenciou profundamente o debate de Benjamin sobre a greve geral; greve esta que leva à dissolução de todo um aparelho estatal. De acordo com Sorel, a greve geral não procura implementar esta ou aquela reforma específica dentro de uma determinada ordem social, mas visa desfazer toda a base jurídica de um dado Estado.

Benjamin une a posição de Sorel a um pensamento messiânico que dá ao seu ponto de vista um caráter teológico e político simultaneamente. A violência divina não apenas nos liberta das formas de responsabilização coercitiva--uma forma forçada ou violenta de obrigação -, como essa libertação é, ao mesmo tempo, uma expiação da culpa e uma oposição à violência coercitiva.

É possível responder a tudo isso com um certo receio de que apenas o anarquismo ou o governo das massas prevaleceriam. Porém, há algumas proposições que devem ser lembradas. Em nenhum momento Benjamin argumenta que deve haver oposição a todos os sistemas legais e não está claro, com base nesse texto, se ele se opõe a certos Estados de direito e não a outros.

Além disso, se ele conversa aqui com o anarquismo, devemos primeiro nos perguntar o que anarquismo significa nesse contexto, bem como ter em mente que Benjamin leva a sério o mandamento "não matarás"--retornarei brevemente ao seu significado depois.

Paradoxalmente, Benjamin vislumbra a libertação da responsabilização legal e da culpa como uma forma de apreender o sofrimento e a transitoriedade na vida, da vida, como algo que nem sempre pode ser explicado através da estrutura da responsabilização moral ou jurídica. Essa apreensão do sofrimento e transitoriedade pode levar, em seu ponto de vista, a um tipo de felicidade.

Apenas recorrendo-se à noção benjaminiana do messiânico é possível ver como a apreensão de um sofrimento--pertencente ao domínio da vida que permanece inexplicável quando se recorre à responsabilização moral--conduz, ou constitui, uma espécie de felicidade. Em minha conclusão, tentarei deixar claro o que entendo desta concepção quando considero seu "Fragmento Teológico-Político".

Benjamin estava trabalhando com várias fontes quando escreveu "Crítica da Violência"...

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