A critica de Hart a tradicao classica do Direito Natural/The Hart's critique to classical Natural law tradition.

AutorRohling, Marcos

Introducao

O direito natural e uma das mais longas e tradicionais doutrinas filosoficas. Tem uma prestigiada lista de pensadores enfileirados em seus renques. No entanto, sobretudo a partir dos seculos XVIII e XIX, veio a cair no ostracismo teorico, principalmente por conta das criticas de pensadores como Hegel, Comte, Marx, Mill e Bentham, para indicar alguns apenas. Coincidiu com seu descredito o aparecimento do positivismo juridico como conjunto de ideias a dar fundamentacao para a compreensao do fenomeno juridico. Notadamente, Austin deu-lhe a solidez teorica ao estabelecer o entendimento do direito como comando.

Ao longo do seculo XX, apoiando-se no itinerario teorico de Austin e contrastando com algumas posicoes de Kelsen, Hart submete as teses mais primitivas do positivismo juridico ao rigor da filosofia analitica. O jurista ingles foi um autor prolifico e sua influencia e evidente ao perceberem-se os destacados autores--Rawls, Dworkin, MacCormick, Finnis, Raz, entre outros--que, em diferentes tempos, tiveram contato com ele e com sua obra, quer como alunos, quer como criticos, quer como defensores, quer como admiradores. Em muitos aspectos, justamente, deve-se pontuar, sua obra The Concept of Law (1), lancada em 1961, e reconhecida como uma das obras mais influentes no ambito da filosofia do direito, no seculo XX, marcando uma nova era na defesa do positivismo juridico. Mas, alem disso, seu metodo e rigor analitico produziram uma obra inovadora e abrangente, cujos efeitos sao duradouros e profundos (ROHLING, 2013, p. 123).

Em seu CD, Hart faz uma releitura do positivismo juridico, a partir das posicoes de Bentham e Austin, descrevendo o direito como um sistema em torno da uniao de regras primarias e secundarias, e estabelecendo, como consequencia, novas criticas aquela tradicional doutrina do direito natural. (2) A par disso, pretende-se apresentar as criticas que Hart formula ao direito natural. Desse modo, o artigo articula quatro momentos: no primeiro, tem-se a apresentacao da teoria do direito de Hart; na sequencia, expoe-se a doutrina classica do direito natural, destacando as figuras de Cicero e de Tomas de Aquino; discute-se, em terceiro lugar, a critica de Hart ao direito natural propriamente, pondo em relevo duas nocoes: a de teleologia humana e a da validade de leis injustas; por fim, no quarto momento, argumenta-se especificamente sobre a relacao entre direito e moral, apontando, notadamente, para o conteudo minimo do direito natural.

  1. Hart e o Positivismo Juridico em The Concept of Law

    A ideia central de Hart e a de levar a um nivel mais defensavel as ideias propostas inicialmente por autores do seculo XVIII e XIX, como Bentham e Austin, especialmente, no que se entende como o positivismo juridico classico. A ideia classica referida e condensada na afirmacao de que "a existencia do direito e uma coisa; seu merito ou demerito e outra [...] Um direito, entre os realmente existentes, e direito, ainda que ocorra de nao o aprovarmos [...]" (AUSTIN, 1954, Licao V, p. 157, traducao minha). Para tanto, Hart passa em revisao as suas principais teses, depurando-as de suas fragilidades, conforme o rigor da filosofia analitica. De certo modo, pode-se dizer que a filosofia praticada por Hart se insere no interior de uma filosofia analitica do direito. A critica que Hart faz dos teoricos classicos do positivismo juridico, como Bentham e, incidentalmente Hobbes, mas especialmente Austin, concentra-se principalmente no fato de que esses autores afirmaram que o direito deve-se basear apenas na coacao. Segundo Hart, o modelo positivista de Austin padece de varias ordens de defeitos, algumas relativas ao conteudo das leis e outras aos ambitos de sua aplicacao e origem. Do mesmo modo, afirma que o conceito de soberano supremo e independente a quem habitualmente se obedece e, sob varios aspectos, enganoso, posto nao haver nada que corresponda a tal descricao nos sistemas juridicos atuais (HART, 2001, p. 2331).

    Nessa linha, se e verdade que Hart e fundamentalmente influenciado pelas teorias de Bentham, Mill e Austin, tambem e verdade que a sua teoria do direito delas se separa consideravelmente. Como sugere MacCormick, a teoria de Hart, a despeito do direito como um sistema de regras sociais, no sentido de uma uniao de regras primarias e secundarias, e radicalmente diferente das consideracoes de Bentham e de Austin acerca do sistema juridico. Como indica, para estes, as regras de um ordenamento juridico sao especialmente comandos emitidos por superiores politicos aos subalternos nas sociedades politicas. Em geral, superiores politicos sao aqueles a quem os outros, por qualquer que seja a razao, obedecem com certo habito, ao passo que os superiores politicos sao os soberanos. Nesse sentido, as leis sao comandos emitidos direta ou indiretamente pelos soberanos aos subalternos. Sobre os comandos, cabe ressaltar que, diversamente de pedidos ou convites, eles implicam na ameaca de uma sancao a ser imposta aqueles que nao obedecem (MACCORMICK, 2010, p. 41). A teoria de Hart, por sua vez, e uma critica dessas posicoes. Mais ainda: a teoria das regras sociais, em particular,

    [...] aborda a inadequacao da nocao de 'habito', que se relaciona a regularidades externas do comportamento, para representar a atitude interna essencial para a elucidacao completa e apropriada da ideia de uma regra. Assim, embora concorde que o Direito sempre e necessariamente deriva de 'fontes sociais', Hart discorda profundamente de Bentham e Austin quanto a caracterizacao adequada dessas fontes (MACCORMICK, 2010, p. 41). Vista sob esse matiz, de acordo com o que sugere Volpato Dutra, a teoria de Hart explica que o direito e uma convencao que pode ser estudada como um fato, ao mesmo tempo em que enfatiza o seu carater hermeneutico, baseado na perspectiva do participante--o ponto de vista interno ao direito (VOLPATO DUTRA, 2013, p. 195). Nesse sentido, remetendo-se ao aspecto dos conteudos da lei, Hart constata que nem todas elas sao formadas por mandatos que afixam sancoes, no caso de desobediencia. Inequivocamente, existem leis cujas existencias se justificam na nao prescricao de sancoes, como e o caso do direito penal, mas na delegacao de poder para que se leve a cabo certos atos, como as que facultam distintas divisoes do governo a se ocupar de tal e qual assunto (HART, 2001, p. 111-21).

    Volpato Dutra ainda explica que essa inovacao hartiana, em relacao aos modelos de Austin e Bentham, que considera o direito sob a perspectiva do participante, isto e, essa inovacao da abordagem do direito a partir do ponto de vista interno, permite a Hart distinguir um sistema juridico o qual tenha fundamento na ampla aceitacao de suas regras de um sistema de regras, por exemplo, de um agrupamento de ladroes. Assim, "[...] seria essa aceitacao que diferenciaria o direito de um sistema baseado na forca, como aquele de um bando de gangsteres ou aquele de um regime tiranico" (VOLPATO DUTRA, 2013, p. 195).

    Hart edificou sua concepcao do positivismo juridico, no que se refere ao conceito de direito, frente as posicoes classicas, singulamente Austin, em criterios, ou mais especificamente, na defesa de tres teses: a) a tese das fontes sociais do direito; b) a tese da separacao conceitual entre direito e moral; e c) a tese da discricionaridade judicial (HART, 1980, p. 04-06). Nesses termos, em evidencia, a versao de Hart do positivismo juridico e, entao, mais sofisticada e refinada que aquela de Austin, pois, partindo das deficiencias do modelo austiniano (por ser baseado num sistema de comando e forca), o qual, como enfatiza, "contem realmente, embora de uma forma confusa e equivoca, algumas verdades acerca de certos aspectos importantes do direito [...]"(HART, 2001, p. 111), chega a verdade sobre a natureza do direito que, contudo, so podem ser apresentadas sem confusao, bem como sua importancia corretamente avaliada

    [...] nos termos de uma situacao social mais complexa, em que uma regra secundaria de reconhecimento seja aceite e utilizada para a identificacao de regras primarias de obrigacao. E esta situacao que merece, admitindo que alguma o mereca, ser designada como fundamento de um sistema juridico (HART, 2001, p. 111). Posto nesses termos, o modelo de positivismo juridico de Hart entende que um sistema juridico e um sistema de regras, constituido por: i) regras primarias, orientadas, em primeiro plano, para os cidadaos particulares, e que estabelecem obrigacoes e deveres, bem como proibem as formas de transgressoes chamadas de crimes, contravencoes, atos infracionais e delitos, e ii) regras secundarias, dirigidas as autoridades (MACCORMICK, 2010, p. 35). As regras secundarias dizem como identificar, modificar e aplicar as regras primarias, ao passo que a regra do reconhecimento, que, como uma regra secundaria, destinada para as autoridades, e uma regra para a identificacao conclusiva das regras primarias de obrigacao (HART, 2001, p. 111). Ou seja, a regra de reconhecimento estabelece os criterios por meio dos quais se determina a validade de todas as outras regras de um sistema juridico particular, impondo deveres sobre aqueles que exercem o poder publico e oficial, especialmente o poder de julgar (MACCORMICK, 2010, p. 35).

    Nesse sentido, essa regra de reconhecimento, que parece lembrar nitidamente a da Grundnorm, de Kelsen (PASCUA, 2011, p. 341), tem uma funcao especialmente determinante na teoria hartiana, pois,

    [o]nde quer que uma tal regra de reconhecimento seja aceite, tanto cidadaos particulares como as autoridades dispoem de criterios dotados de autoridade para identificar as regras primarias de obrigacao. Os criterios deste modo disponiveis podem [...] tomar uma ou mais formas diversas: estas incluem a referenca a um texto dotado de autoridade; ao acto legislativo; a pratica consuetudinaria; as declaracoes gerais de pessoas determinadas ou a decisoes judiciais passadas, proferidas em casos concretos (HART, 2001, p. 111). E mais que...

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