Não-cumulatividade do icms: dimensão normativa e eficácia

AutorAnderson Trautmann Cardoso
CargoEspecialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET.
Páginas231-250

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1. Introdução

Originária da França,1 a não-cumulatividade surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a edição da Lei n. 3.520, de 30 de dezembro de 1958, passando o imposto sobre consumo (atual IPI) a permitir o abatimento do valor incidente nas aquisições de matérias-primas e demais insumos empregados na fabricação e no acondicionamento de produtos submetidos a sua incidência.

Em 1o de dezembro de 1965, por meio da Reforma à Constituição Fede-ral de 1946, levada a efeito pela Emenda Constitucional n. 18, o Brasil, seguindo a tendência mundial, concede aos Estados a competência para a instituição do ICM não-cumulativo. A Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, manteve as mesmas determinações, mas, em 1o de dezembro de 1983, a Emenda Constitucional n. 23 inseriu uma relevante modificação, estabelecendo que a isenção ou a não-inci-dência, salvo determinação em contrário, não implicariam direito a crédito do imposto, mantida no atual sistema.

Atualmente, a não-cumulatividade é um dos principais institutos no campo do Direito Constitucional Tributário, caracterizando o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Intermunicipal e Interestadual e Comunicação (ICMS), na forma como previsto na Constituição Federal de 1988.

Atributo peculiar aos modernos impostos incidentes sobre a circulação de mercadorias, a não-cumulatividade tem como objetivo que o tributo incida tão-

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somente sobre o valor acrescido em cada operação integrante da cadeia produtiva, eliminando os prejuízos da denominada incidência "em cascata".2

Instituto da mais alta relevância teórica e prática para a atividade jurisdicional, a não-cumulatividade do ICMS é objeto de intenso debate na doutrina tributária e na jurisprudência brasileira, relacionando-se com concepções fundamentais do sistema jurídico pátrio, o que lhe confere conseqüências jurídicas igualmente relevantes.

Diante disso, o presente estudo propõe-se a analisar, de uma maneira dogmática, a não-cumulatividade do ICMS, visando a precisar sua dimensão normativa e eficácia, a fim de que se possa identificar seu real conteúdo e alcance no sistema jurídico brasileiro erigido sob a égide da Constituição Federal de 1988, garantindo sua adequada aplicação e efetividade.

A proposição é enfrentar questões como: qual a dimensão normativa da não-cumulatividade do ICMS extraída pela doutrina tributária e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a partir da Constituição Federal de 1988? É apropriado classificá-la como princípio? Qual a sua real eficácia?

Para tanto, principiar-se-á com a análise da não-cumulatividade do ICMS no ordenamento jurídico pátrio, desde a sua origem até o sistema erigido sob a égide da Constituição Federal de 1988.

Na segunda parte do trabalho, pro-curar-se-á estudar a distinção entre as espécies normativas "princípio" e "regra", partindo-se das lições dos principais dou-trinadores que analisaram o assunto, com especial destaque às teorias de Dworkin e Alexy.

Por fim, buscar-se-á qualificar a não-cumulatividade do ICMS como "princípio" ou "regra", com o propósito de, a partir de uma interpretação sistemática e hierarquizadora do direito, demonstrar seu real conteúdo e alcance no sistema tributário brasileiro, garantindo sua aplicação adequada e efetividade.

O trabalho justifica-se diante da ausência de um exame mais crítico e coerente por parte da doutrina brasileira em relação à não-cumulatividade do ICMS, que se ampare nos modernos estudos apresentados pela Teoria Geral do Direito acerca da distinção entre as espécies normativas "princípio" e "regra".

E a inexistência dessa espécie de estudo acaba por ocasionar pesados prejuízos ao próprio entendimento do ordenamento jurídico pátrio de uma forma sistemática, na medida em que afeta a aplicação adequada da não-cumulatividade do ICMS e, conseqüentemente, a sua efetividade.

De fato, como se demonstrará no decorrer do trabalho, partindo-se da distinção entre "princípios" e "regras" propalada atualmente pela Teoria Geral do Direito, diferentes serão os efeitos decorrentes de sua aplicação, de acordo com a sua qualificação, o que permitirá, concebida a devida classificação, uma visão mais coerente do próprio sistema constitucional tributário.

Diante do exposto, patente a relevância prática do estudo proposto, na medida em que tem por objetivo, justamente, definir a dimensão normativa do instituto da não-cumulatividade do ICMS, com vistas a possibilitar a sua adequada aplicação e efetividade.

2. A dimensão normativa da não-cumulatividade do ICMS

Na Constituição Federal de 1988, hipóteses de incidência previstas distintamente no Texto Constitucional de 1967 - algumas na competência da União Federal3 e outras na competência dos Estados e

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do Distrito Federal4 - passaram a integrar um único imposto, o vigente ICMS.

De fato, a hipótese de incidência do ICMS, no ordenamento jurídico erigido a partir da Constituição Federal de 1988, encontra-se prevista no inciso II do art. 155 do texto constitucional, in verbis:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...);

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e inter-municipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;5

A não-cumulatividade do imposto, por sua vez, está prevista no mesmo art. 155 da Constituição Federal, com a seguinte redação:

Art. 155. (...).

§ 2°. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

  1. não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

  2. acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

    (...);

    XII - cabe à lei complementar:

    (...);

  3. disciplinar o regime de compensação do imposto;6

    Pois bem, diante da previsão contida no § 8o do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e em razão da ausência da "lei complementar necessária à instituição do imposto", o Convênio ICM n. 66/1988, ao regular provisoriamente o tributo, foi o primeiro texto a disciplinar a não-cumulatividade do ICMS sob a égide da atual Constituição Federal.

    E a não-cumulatividade do ICMS estava expressa no art. 28 do Convênio ICM n. 66/1988 nos seguintes termos:

    Art. 28. O imposto será não-cumu-lativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.7

    Posteriormente, editou-se a Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996, ora vigente, cujo comando contido em seu art. 19 é idêntico àquele do Convênio ICM n. 66/1988:

    Art. 19. O imposto é não-cumulati-vo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.8

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    Já o art. 20 da Lei Complementar n. 87/1996, utilizando-se da atribuição concedida pela alínea "c" do inciso XII do § 2° do art. 155 da Constituição Federal, disciplinou o regime de compensação do ICMS assegurando ao "ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e in-termunicipal ou de comunicação".9 Porém, especialmente com as alterações promovidas pela Lei Complementar n. 102/2000, estabeleceu limitações a este aproveitamento, complementadas em seu art. 33.

    No que tange ao Estado do Rio Grande do Sul, a não-cumulatividade do ICMS está prevista na atual Lei n. 8.820/1989 com a redação que segue:

    Art. 14. O imposto é não-cumula-tivo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermuni-cipal e de comunicação, com o montante cobrado nas anteriores por esta ou outra unidade da Federação.10

    Esse, também, o comando contido atualmente no art. 30 do Decreto Estadual n. 37.699/1997 (Regulamento do ICMS):

    Art. 30. O imposto é não-cumula-tivo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, com o montante cobrado nas anteriores por esta ou outra unidade da Federação.11

    E a sistemática de apuração do ICMS devido, contemplando a não-cumulatividade do ICMS, prevista na Constituição Federal, é estabelecida pela Lei n. 8.820/1989, nos seguintes moldes:

    Art. 21. O montante devido resultará da diferença a maior (saldo devedor), em cada período de apuração fixado em regulamento, entre as operações relativas à circulação de mercadorias ou às prestações de serviços, escrituradas a débito fiscal e a crédito fiscal.

    § 1°. Constituirão débito fiscal e como tal serão escriturados:

  4. o valor resultante da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo, relativamente às operações e prestações realizadas;

    (...);

    § 2°. Constituirão crédito fiscal e como tal serão escriturados:

  5. o valor correspondente ao imposto cobrado, relativamente às mercadorias entradas no estabelecimento e aos serviços a ele prestados;

  6. outros créditos...

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