Curandeirismo, curandeirices, práticas e saberes terapêuticos: reflexões sobre o poder médico no Brasil

AutorRodolfo Franco Puttini
Páginas32-49
32
CURANDEIRISMO, CURANDEIRICES, PRÁTICAS
E SABERES TERAPÊUTICOS: REFLEXÕES SOBRE
O PODER MÉDICO NO BRASIL
HEALER, FAITH HEALING, THERAPEUTIC PRATICS
AND KNOWLEDGE: REFLECTIONS ON THE
MEDICAL POWER IN BRAZIL
Rodolfo Franco Puttini(*)
RESUMO
O objetivo deste trabalho é recuperar os recursos discursivos disponíveis
sobre o tema curandeirismo gerados pelo campo jurídico, tendo em vista refletir
sobre o lugar das curandeirices e práticas e saberes terapêuticos no campo da
saúde. Analiso diferentes depoimentos em um julgamento do crime de
curandeirismo sobre os quais depreendo elementos fundamentais para análise
arqueológica do poder médico no Brasil.
Palavras-chave
Curandeirismo; Medicina Tradicional; Saúde.
ABSTRACT
The objective of this work is to recover the discursive resources available
on the subject of healer generated by the juridic field, em view to reflect on
the place of faith healing, therapeutic knowledges and therapeutic practice in
(*) Cientista Social, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
professor assistente no Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu,
Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP). Botucatu/SP-Brasil. E-mail:
. Recebido em 30.03.09. Revisado em 08.10.09. Aprovado em 12.07.10.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 11, n. 3 p. 32-49 Nov. 2010/Fev. 2011
Rodolfo Franco Puttini
33
the health field. Analyze different statements in a trial of the crime of healer on
which I understand the key elements for archaeological analysis of medical
power in Brazil.
Keywords
Faith Healing; Health; Traditional Medicine
INTRODUÇÃO:
O CONCEITO DE CURANDEIRISMO
Desde a Proclamação da República no Brasil, e de modo bastante
peculiar(1), o Estado brasileiro dispensa tratamento legal às práticas de cura
por meio de legislação específica, caracterizando-as por ações criminosas relativas
à saúde pública. Com o tempo, estabeleceu-se uma jurisprudência exclusiva
sobre o assunto(2), que traduz as normas e condutas sociais para as variadas
formas de curandeirices no país, sintetizadas no conceito curandeirismo(3).
De fato, é corrente entre profissionais de saúde que o termo curande-
rismo sintetiza uma ação criminosa e representa as curandeirices populares,
identificadas por práticas ultrapassadas desde a origem da medicina científica.
Por exemplo, Haring(4) relaciona o curandeirismo com o sentido da ética
médica, define-o por atitudes de comportamento de uma cultura ou grupo
profissional que assumem uma hierarquia de valores e se o código ético é o
“esforço de alimentar e garantir o ethos” a moralidade médica consiste na
realização do ethos. Para Campos,(5) importa associar à deontologia (ciência
do dever): o curandeirismo e o charlatanismo são conceituados como um
crime à saúde pública, uma vez que para ele escapa da conduta “inculcando
ou anunciando a cura por meio secreto e infalível”. León(6) identificou curan-
deirismo a “charlatanismo” pela classificação das práticas heréticas em
(1) PEIXOTO, I. D. Superstição e crime no Brasil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980.
(2) SCHRITZMEYER, A. L. P. Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros
(1900-1990). São Paulo: IBCCrim, 2004.
(3) Os artigos penais relativos à prática médica, prescritos no Código Penal desde sua primeira
versão em 1890 e subsequentes modificações (1930, 1945). Atualmente em vigor, são os seguintes
três artigos penais relativos às práticas não médicas: “Exercício Ilegal da Medicina: exercer, ainda
que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou
excedendo-lhe os limites”; “Charlatanismo: inculcar ou anunciar cura por meio secreto infalível; e
“Curandeirismo ou exercer o curandeirismo: I. prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente,
qualquer substância; II. usando gestos ou qualquer outro meio; III. fazendo diagnósticos”.
(4) HARING, B. Medicina e moral no século XX. Rio de Janeiro: Ed. Verbo, 1974.
(5) CAMPOS, J. Q. O hospital, a lei e a ética. São Paulo: São Paulo Ed., 1976.
(6) LÉON, A. C. Ética en medicina. Barcelona: Ed. Científico-Médica, 1973.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 11, n. 3 p. 32-49 Nov. 2010/Fev. 2011
Curandeirismo, curandeirices, práticas e saberes terapêuticos: reflexões...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT