Das pestes do século XVII à pandemia do século XXI no Recife: Regulamentações da vida urbana e desafios ao direito à cidade

AutorMaria Angela de Almeida Souza, Fabiano da Rocha Diniz, Eugênia Giovanna Simões Inácio Cavalcanti
CargoArquiteta e urbanista. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora titular aposentada da UFPE, permanece em exercício como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. Coordena, desde 2005, o Observatório Pernambuco, Núcleo Recife do INCT/Observatório das Metrópoles. Atua...
Páginas820-865
Revista de Direito da Cidade vol. 13, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2021.54957
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Revista de Direito da Cidade, vol. 13, nº 2. ISSN 2317-7721. pp.820-865 820
DAS PESTES DO SÉCULO XVII À PANDEMIA DO SÉCULO XXI NO RECIFE: REGULAMENTAÇÕES DA VIDA
URBANA E DESAFIOS AO DIREITO À CIDADE
FROM THE 17TH CENTURY PESTES TO THE 21ST CENTURY PANDEMIC IN RECIFE: URBAN LIFE
REGULATIONS AND CHALLENGES TO THE RIGHT TO THE CITY
Maria Angela de Almeida Souza
1
Fabiano da Rocha Diniz
2
Eugênia Giovanna Simões Inácio Cavalcanti
3
RESUMO
Este artigo analisa medidas e regulamentos adotados para enfrentamento de doenças que assolaram
a cidade do Recife de modo extensivo, em diversos momentos da sua história. Procura demonstrar
que as relações de poder que se expressam por meio da atuação do Estado, na sua função de regulação
da vida da cidade, estão entrelaçadas com as relações de saber vigentes e produzem impactos
concretos na sociedade, alguns dos quais desafiam o direito à cidade. Adota o método histórico,
contemplando matérias do direito, da política pública e do saber médico, e elege quatro momentos
1
Arquiteta e urbanista. Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora titular
aposentada da UFPE, permanece em exercício como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Urbano da UFPE. Coordena, desde 2005, o Observatório Pernambuco, Núcleo Recife do
INCT/Observatório das Metrópoles. Atua na área de planejamento e gestão urbana, habitação social,
desigualdade e pobreza urbana, direito urban ístico e histó ria urbana. Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco Brasil. ORCID Id: https://orcid.org/0000-
0002-8808-1479 Lattes: http://lattes.cnpq.br/8276915082480930 E-mail: sou za.mariaangela@gmail.com
2
Arquiteto e urbanista. Doutor em Geografia, Planejamento e Urbanismo pela Université Paris 3, Sorbonne
Nouvelle. Professor do Departamento d e Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Pesquisador da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesqu isa e Aprendizagem (CIAPA) e do
Observatório Pernambuco, Núcleo Recife do INCT/Observatório das Metrópoles. Atua nas áreas de projeto
arquitetônico; desenho urbano; planejamento e gestão; políticas públicas de águas; regularização fundiária e
habitação social. Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco Brasil.
ORCID Id: https://orcid.org/0000-0001-9180-0959 Lattes: http://lattes.cnpq.br/5333469293756214 E-mail:
fabiano.diniz@ufpe.br
3
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1993), Especialização em Direito Administrativo
e Cons titucional pela Universidade Federal de Pernambuco (2000) e Mestrado em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (2004). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Urbano da UFPE e exerce o cargo de Procuradora do Municíp io do Recife, atuando no Núcleo de Urbanismo e
Meio Ambiente, é membro do Conselho da Cidad e do Recife, do Conselho Municipal do Meio Ambiente,
professora universitária de Direito Administrativo e Direito Urbaní stico. Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco Brasil. ORCID Id: https://orcid.org/0000-
0002-5864-543X Lattes: http://lattes.cnpq.br/1916570856603056 E-mail: eugeniasimoes2000@yahoo.com.br
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DOI: 10.12957/rdc.2021.54957
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Revista de Direito da Cidade, vol. 13, nº 2. ISSN 2317-7721. pp.820-865 821
mais expressivos da história do Recife, em que epidemias e pandemias assolam a cidade: no final do
século XVII, com a epidemia da febre amarela; em meados do século XIX, com o retorno desta
epidemia, seguida da epidemia do cólera-morbo; no início do século XX, com a pandemia da gripe
espanhola; e, atualmente, no século XXI, com a pandemia da Covid-19. Pautado em estudos e
documentos históricos, acadêmicos e técnicos, contribui para evidenciar semelhanças e distinções de
processos que uma abordagem de tempo longo propicia, alertando para a possibilidade da persistência
de velhos processos nos novos contextos em que uma doença afeta a vida da cidade.
Palavras-Chave: Epidemias. Pandemia da Covid-19. Regulamentos municipais. Saber médico. Recife.
ABSTRACT
This article analyzes measures and regulations adopted to cope with diseases that have plagued the
city of Recife in an extensive way, at different moments in the city's history. It seeks to demonstrate
that the power relations that are expressed through the action of the State, in its function of regulating
the life of the city, are intertwined with the relations of knowledge in force and produce concrete
impacts on society, some of which challenge the right to the city. It adopts the historical m ethod,
contemplating matters of law, public policy and medical knowledge, and chooses four most expressive
moments in the history of Recife, when epidemics and pandemics hit the city: at the end of the 17th
century, with the yellow fever epidemic ; in the middle of the 19th century, with the return of this
epidemic, followed by the cholera-morbid epidemic; in the early 20th century, with the Spanish flu
pandemic; and, currently, in the 21st century, with the pandemic of COVID-19. Based on historical,
academic and technical studies and documents, it contributes to highlight similarities and distinctions
of processes that a long time approach provides, alerting to the possibility of the persistence of old
processes in the new contexts in which a disease affects city life.
Keywords: Epidemics. Covid-19 Pandemic. Municipal regulations. Medical knowledge. Recife.
INTRODUÇÃO
A doença é quase sempre um elemento de desorganização e de reorganização
social: a esse respeito ela torna frequentemente mais visíveis as articulações
essenciais do grupo, as linhas de força e as tensões que o transpassam. O
acontecimento mórbido pode, pois, ser o lugar privilegiado de onde melhor
observar a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas
religiosas, as relações entre os poderes, ou a imagem que uma sociedade tem de
si mesma. (RAVEL; PETER, 1995, p. 144).
Revista de Direito da Cidade vol. 13, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2021.54957
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Essas palavras de Ravel e Peter e os recentes impactos da Covid-19 na vida das pessoas e das
cidades, espalhados pelas diversas partes do mundo, motivaram um olhar para o passado da cidade
do Recife, que vivenciou difíceis momentos de epidemia, desde o início de sua história. Um olhar que
busca observar, de modo mais específico, os mecanismos administrativos e normativos estabelecidos
pelo governo local para regular a vida em sociedade, visando ao enfrentamento de surtos de doenças
que assolaram a cidade em quatro momentos de sua história: no final do século XVII, com a epidemia
de febre amarela; em meados do século XIX, com o retorno dessa epidemia, seguida, poucos anos
após, do surto epidêmico da cólera-morbo; no início do século XX, com a epidemia da gripe espanhola;
e atualmente, no século XXI, com a pandemia da Covid-19.
Essa recorrência à história tem respaldo nas análises de Rezende (2017, p. 10), segundo o qual
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agruras e incertezas do presente. [...] Muita coisa se repete, muitas práticas não foram desfeitas apesar
de todo fluxo de modernização, 
Neste artigo, busca-se o resgate dessas práticas recorrentes, procurando demonstrar que o
exercício do poder estatal, aqui representado, em especial, pela instância municipal, no desempenho
de sua função reguladora da v ida da cidade, expressa relações de poder que estão entrelaçadas com
as relações de saber vigentes, como aponta Foucault (1979, 1980), produzindo impactos concretos na
sociedade, alguns dos quais se configuram como desafios ao direito à cidade.
Apesar de adotar o método de abordagem histórica, o artigo contempla, também, matérias do
direito, da política pública e do saber médico, ao eleger como foco os mecanismos administrativos e
as medidas normativas da gestão municipal no enfrentamento de doenças que assolam de modo
extensivo a cidade do Recife. Pautado em estudos e documentos históricos, acadêmicos e técnicos, o
relato histórico aqui apresentado é orientado pela noção de "descontinuidade" oriunda da reflexão de
Foucault (1977, 1979) sobre a história. Adota para a reflexão não a continuidade dos processos
históricos, mas o recorte de momentos significativos da história que expressam aspectos importantes
das questões centrais abordadas.
Na periodização adotada, são destacados quatro momentos não somente da história do
Recife, mas, também, de configurações distintas do Município brasileiro. Este se constitui no único
ente público que integra a estrutura político-administrativa do Brasil, desde os primórdios de sua
colonização. E, ao privilegiar a instância municipal, o artigo se pauta na prevalência conferida ao
Município brasileiro, desde a sua instituição, de se incumbir de matérias de interesse local.

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