Defense of studies on the constitutional history of Brazil: a critique of the doctrine of the effectiveness of the Constitution/Por uma historia constitucional brasileira: uma critica pontual a doutrina da efetividade.

AutorLynch, Christian Edward Cyril

Introducao

Em tempos neoconstitucionalistas, a historia constitucional brasileira ainda e, em sua maior parte, ilustre desconhecida. Por que? Havera alguma relacao entre o exito do neoconstitucionalismo e o relativo desprezo votado a historia constitucional? Seria possivel e desejavel, em semelhante contexto, a retomada dos estudos academicos no campo da historia e do pensamento constitucional brasileiro?

Estas sao as perguntas que orientam o presente artigo, que se divide em seis secoes. Na primeira, apresenta-se o neoconstitucionalismo e a relacao por ele mantida, na Europa, com a nova historia constitucional, que e, la, saudada por seu papel critico e seu uso hermeneutico. Dedicada ao estado da relacao entre ambos no Brasil, a secao seguinte resume a critica neoconstitucionalista nativa a nossa historia constitucional, com enfase na doutrina da efetividade de Luis Roberto Barroso, que se tornou sua versao mais difundida e consistente. O item 3 se debruca sobre o pensamento de Konrad Hesse e de Raimundo Faoro, sobre os quais repousam alguns dos principais fundamentos teoricos da critica do constitucionalismo da efetividade a nossa historia constitucional. Em seguida, tais fundamentos sao questionados do ponto de vista de seu valor cientifico. Destaca-se sua dimensao ideologica e questiona-se o modo por que elas tem sido empregadas para desvalorizar o estudo da historia do direito do pais. Passa-se, enfim, a critica das tres principais teses da doutrina da efetividade a respeito da historia constitucional: primeiro, a de que haveria uma tradicao constitucional brasileira, que cumpria ser combatida; segundo, que essa tradicao teria a inefetividade como marca; terceiro, que a referida inefetividade se originava de um vicio das elites brasileiras, sua "insinceridade normativa". Sugere-se, ao final, que nossa menor efetividade constitucional, quando comparada aquela dos paises desenvolvidos, explica-se por razoes historicas: aqui, a transplantacao de instituicoes politicas consiste numa tecnica de modernizacao social e politica. A conclusao defende a necessidade e a utilidade da historia constitucional para o desenvolvimento de um neoconstitucionalismo mais consistente.

  1. Neoconstitucionalismo e renascimento da historia constitucional na Europa.

    Pela narrativa hoje convencional na academia do direito, afirma-se que, com a ascensao do pos-positivismo juridico, neoconstitucionalismo, ou nao positivismo principialista, reintroduziu-se a razao pratica no mundo do direito (que teria se perdido desde Aristoteles) e se afirmou o carater vinculante dos principios juridicos (Figueroa, 1998). E claro que ha divergencia conceitual e terminologica entre seus defensores--a ponto de uma das primeiras obras a usar o termo "neoconstitucionalismo" ja cuidar de utiliza-lo no plural (1)--, mas, grosso modo, pode-se afirmar que o neoconstitucionalismo e geralmente identificado com a teoria constitucional, elaborada a partir da decada de 1970, tendo por referencia o conjunto de textos constitucionais europeus surgidos depois da segunda guerra. Tais constituicoes nao se limitavam a estabelecer competencias, estruturar os poderes publicos, e definir alguns direitos individuais; elas continham alto numero de normas substantivas--as chamadas "normas programaticas" (Crisafulli, 1952)--, que condicionavam a atuacao do Estado por meio da fixacao de finalidades publicas. Alem disso, muitos de seus dispositivos eram redigidos com a utilizacao de conceitos indeterminados. Com base neste novo padrao de constituicao, a academia e a comunidade de operadores institucionais do direito, com destaque para os juizes, construiram novos topoi hermeneuticos. Tornaram-se comuns, em obras monograficas e em decisoes judiciais, referencias a categorias como as das "tecnicas interpretativas proprias dos principios constitucionais, a ponderacao, a proporcionalidade, a razoabilidade, a maximizacao dos efeitos normativos dos direitos fundamentais, o efeito irradiacao, a projecao horizontal dos direitos, o principio pro personae etc.". Os juizes passaram a lidar, por intermedio dos principios constitucionais, com valores constitucionais, que deveriam ser aplicados aos casos "de forma justificada e razoavel, dotando-os, dessa maneira, de conteudos normativos concretos" (Carbonell, 2007, pp. 9-11).

    Mas nao e so. O neoconstitucionalismo parece haver redimensionado, ao menos na Europa, a propria funcao da historia do direito. Ao inves de servir para legitimar o direito do presente--supostamente superior ao do passado--, ela serve para questionar o direito contemporaneo, sublinhando sua condicao precaria (porque historica), e sugerindo a possibilidade de pensa-lo de modo menos naturalizado (2). O mesmo se deu com a historia constitucional, entendida como "uma disciplina historica (...) cujo objeto e a genese e o desenvolvimento da constituicao adequada a um Estado liberal e liberal democratico, independentemente da forma adquirida por essa constituicao e seu lugar no ordenamento juridico" (Suanzas-Carpegna, 2012, p. 57).

    Por se achar proxima as discussoes sobre democracia e politica, a historia constitucional sentiu de perto os efeitos do neoconstitucionalismo. E sintomatico que muitos autores franceses e italianos, habituados ao direito constitucional teorico ou dogmatico, ou a teoria do direito, como Michel Troper, Francois Saint-Bonnet e Gustavo Zagrebelsky, tenham se voltado, nas ultimas duas decadas, ao estudo da historia constitucional. Esse poder de atracao e explicado porque o estudo da historia do direito colocaria o jurista "em contato com outros mundos, com outras experiencias", impedindo "o cronocentrismo, a ilusao de que toda a realidade coincida com o nosso presente". A historia constitucional, em particular, permitiria ao jurista constitucional "recuperar a historicidade da democracia" (Costa, 2012, p. 9).

    A historia constitucional tambem ainda teria algo a dizer do ponto de vista hermeneutico: a distancia crescente das constituicoes, em relacao ao tempo de sua edicao, e a complexidade de sociedades, cada vez mais plurais, enfraqueceram a vontade constituinte como formula de interpretacao:

    As constituicoes do nosso tempo miram o futuro mantendo firme o passado, isto e, o patrimonio da experiencia historicoconstitucional que querem salvaguardar e enriquecer. (...). Passado e futuro se ligam em uma unica linha e, assim como os valores do passado orientam a busca do futuro, assim tambem as exigencias do futuro obrigam a uma continua atualizacao do patrimonio constitucional que vem do passado e, portanto, a uma incessante redefinicao dos principios da convivencia institucional. A 'historia' constitucional nao e um passado inerte, mas a continua reelaboracao das raizes constitucionais do ordenamento que nos e imposta no presente pelas exigencias constitucionais do futuro. A dimensao historica do direito constitucional nao e, entao, um acidente anedotico, algo que satisfaca apenas nosso gosto pelas antiguidades ou a curiosidade pelas realizacoes do espirito humano. Poderia ser um elemento constitutivo do direito constitucional atual, o que lhe permitiria dar um sentido a sua obra quando a ciencia do direito constitucional resolvesse compreender que nao existe um amo que requeira ser servido, ao contrario do que aconteceu no passado (Zagrebelsky, 2008, p. 91)

    Deu-se, assim, na Europa, o renascimento da historia constitucional, revigorado junto ao constitucionalismo pos-positivista. Conforme afirmavam, ha alguns anos, dois de seus estudiosos, "a historia constitucional se tornou onipresente, independentemente de sua forma nacional" (Herrera e Le Pillouer, 2012, p. 8).

    Sera esta a realidade dos estudos de historia constitucional no Brasil?

  2. A critica neoconstitucionalista a nossa historia constitucional.

    Desde o final dos anos noventa, o direito constitucional brasileiro foi objeto de extraordinaria ascensao, tendo desbancado a hegemonia da processualistica e do direito civil. Para tanto, concorreram o modelo da Constituicao de 1988, disciplinando a quase totalidade da vida social; e a outorga, ao Poder Judiciario, do papel de velar pela constituicao, armando-o de competencias extras, que afinal restaram exercidas com vigor, tais como a do controle concentrado da constitucionalidade. (3) A autonomia concedida ao Ministerio Publico, o incremento do acesso a Justica pela instituicao da Defensoria Publica e a multiplicacao dos juizados especiais, alem do boom das faculdades de direito, familiarizaram os bachareis com o neoconstitucionalismo. O resultado foi verdadeira avalanche de obras de sobre direito constitucional em perspectiva neoconstitucionalista, o que impactou profundamente a vida juridica e os programas de pos-graduacao em direito.

    Tal avalanche, no entanto, nao teve repercussao equivalente na historia constitucional. Ate a decada de 1980, o prestigio desta acompanhava o do direito constitucional: atingiu seu zenite na Primeira Republica, manteve algum sucesso no periodo subsequente, e declinou sob o regime militar. (4) Entao, o que surpreende e que, ao renascimento do direito constitucional, nas ultimas decadas, nao tenha correspondido renascimento equivalente da historia constitucional.

    Na verdade, a leitura de obras paradigmaticas do novo constitucionalismo sugere que, ao contrario do europeu, o neoconstitucionalismo brasileiro--em particular, sua teoria de base, a doutrina da efetividade--, construiu-se deliberadamente contra nossa historia constitucional. (5) Os autores comprometidos com a mudanca da mentalidade juridica nas decadas de 1980 e 1990 nao se limitaram a apontar a decadencia a que o constitucionalismo teria chegado durante o regime autoritario; condenaram, em bloco, toda a historia constitucional brasileira. Contra uma suposta tradicao constitucionalista anterior, reputada elitista ou inefetiva, os autores do novo constitucionalismo brasileiro enfatizavam a necessidade de romper com o passado a fim de instaurarem, nao...

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