A defesa judicial do consumidor bancário

AutorAndressa Jarletti Gonçalves de Oliveira
CargoProfessora colaboradora na Escola Superior de Advocacia (ESA) e membro das Comissões de Direito do Consumidor e Direito da Saúde da OAB/PR
Páginas22-28

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I Introdução

Hoje é praticamente impossível viver sem utilizar algum produto ou crédito bancário. Nesta utilização, muitas vezes o consumidor opta por caminhos mais onerosos para obter recursos, sem ter compreensão exata dos encargos praticados e seus respectivos efeitos na evolução dos contratos.

A grande maioria dos encargos são instituídos unilateralmente pelas instituições financeiras. Em razão das taxas altas e forma como são aplicados (capitalizados), podem promover o crescimento da dívida em progressão geométrica. Não raro, o consumidor se depara com um endividamento em valores excessivos e que não tem condições de pagar.

A partir da década de 90, o Poder Judiciário passou a receber um volume crescente de pedidos revisionais de contratos bancários. Tanto em defesa nos processos ajuizados pelas instituições financeiras, para cobrança de dívidas e retomada de bens, quanto em demandas promovidas por seus clientes.

As discussões judiciais, invocadas pelos consumidores, têm como temas centrais a vedação à capitalização de juros e a limitação das taxas e encargos praticados pelos bancos, tanto na normalidade quanto na inadimplência.

A preocupação com limitação das taxas de juros e vedação da capitalização não é recente, tendo sido tratada pela Lei de Usura (Decreto-Lei 22.626/33) e, também, na Súmula 121/STF1, aprovada na sessão plenária de 13 de dezembro de 1963.

Contudo, a grande abertura para discutir tais questões nos contratos bancários surgiu com a edição do Código de Defesa do Consumidor.

II As alterações do Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor materializou os novos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988.

Quando a Carta Cidadã instituiu – ao menos em seu texto – o advento do Estado Social, introduziu uma nova ordem jurídica, visando ao bem estar social dos indivíduos e à funcionalização da propriedade privada. É o fenômeno que Roberto Senise Lisboa define como a “socialização do Direito, onde o homem é considerado como indivíduo em meio a sociedade que efetivamente integra, e não mais de forma isolada, como propugnado pela vertente anterior”2.

Com a Constituição Federal de 1988; houve uma profunda mudança ideológica. Abandonou-se aquela visão individualista que norteava o ordenamento jurídico e o direito dos contratos, para se utilizar o Direito como instrumento de satisfação das necessidades coletivas.

Sob essa ótica, consagraram-se os princípios: (I) da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); (II) da justiça e solidariedade, do desenvolvimento nacional e da justa distribuição de riquezas (art. 3º, I, II e III); (III) da função social da propriedade (art. 5º, XXIII); (IV) da valorização da justiça social e da dignidade do homem, disciplinando diretamente a atividade econômica (art. 170, caput, III, VII e IX).

A defesa do consumidor foi instituída na Carta Magna tanto como princípio básico do Estado Social Democrático de Direito, no artigo 5°, XXXII, quanto como valor obrigatório que deve ser observado no desenvolvimento da ordem econômica (art. 170, V).

Para atender à previsão constitucional de proteção do consumidor, foi editado o Código de Defesa do Consumidor. O CDC alterou sobremaneira os princípiosPage 23vigentes na concepção clássica do direito contratual, constituindo “a maior transformação nas relações contratuais desde a Revolução Industrial, embora essa evolução ainda prossiga”3.

A partir do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e natureza cogente, a autonomia da vontade passou a ser limitada e vigiada, para obstar abuso pela parte economicamente mais forte do contrato (o fornecedor)4. Reconheceu-se expressamente a vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), equiparando-se a este as demais pessoas submetidas a práticas abusivas (art. 29, CDC).

A livre manifestação de vontade deixou de ser absoluta, devendo atender aos novos princípios ditados, da boa-fé objetiva e da equidade contratual (art. 4º, III). A força vinculante deve se sujeitar à validade da condição contratual5, elencando a Lei rol, não taxativo, de situações em que a cláusula contratual se apresenta abusiva (art. 51) e é nula de pleno direito.

O Código de Defesa do Consumidor firmou dois novos pilares do direito contratual, que são o supedâneo para 99% das discussões judiciais dos contratos de consumo bancário: a boa-fé objetiva e a equidade contratual.

A boa-fé foi instituída no CDC como princípio próprio, basilar e informador das relações de consumo6, limitador da autonomia privada, principalmente com relação ao conteúdo do contrato. Passou-se a conceber o contrato em análise menos direcionada à vontade declarada, voltando-se às expectativas e aos efeitos que produz na sociedade, valorizando-se a função social do contrato de consumo7.

Em decorrência do princípio da boa-fé e em prol do interesse social na segurança das relações jurídicas, as partes deverão atuar com lealdade e confiança recíprocas, auxiliando-se nos momentos de formação e execução do contrato8. Obtém-se pela aplicação deste princípio um contrato limpo, sem artimanhas ou cláusulas abusivas e com redação clara9. A transparência na contratação implica uma relação mais justa e sincera10.

Deste princípio, deriva o direito essencial do consumidor de ser informado sobre custos e condições de aquisição ou utilização de determinado serviço ou produto (art. 6º, III). Nos contratos de consumo bancários, a boa-fé objetiva somente estará evidenciada quando a instituição financeira atender ao comando do artigo 52 do CDC, informando prévia e discriminadamente todos os encargos e custos da utilização de determinado serviço ou produto (crédito ou dinheiro).

A observância da boa-fé na relação contratual consumerista é imprescindível e sua falta macula o vínculo. A aplicação deste princípio, no entanto, não visa à desconstituição do vínculo contratual, mas sim à moralização do contrato11. O princípio da boa-fé objetiva caracteriza-se, portanto, como um autorizador da revisão contratual12, operando-se a relativização da pacta sunt servanda.

O princípio da equidade busca um equilíbrio no conteúdo das condições contratuais, de modo a se alcançar uma justiça substancial, assegurada pela razoabilidade de proporção entre as prestações dos contratantes13. A aplicação deste princípio encontra-se desdobrada em duas premissas: (I) a nulidade absoluta das chamadas cláusulas abusivas (art. 51, CDC) e (II) a interpretação do contrato favorável ao consumidor, parte mais fraca da relação (art. 47).

A interpretação favorável do contrato ao consumidor permite tratar as partes consoante a noção de igualdade de Rui Barbosa, ou seja, na medida de suas desigualdades. Reconhecendo o CDC, em seu artigo 4º, I, que o consumidor é a parte mais fraca da relação de consumo, a interpretação favorável consiste em uma maneira de estabelecer um equilíbrio nos poderes contratuais14.

Já a identificação das cláusulas abusivas ocorre segundo dois critérios distintos: o formal e o concreto ou material15.

O primeiro decorre dos artigos 46 e 54, §§ 3º e 4º, e vincula a obrigatoriedade de cumprimento da cláusula à oportunidade de tomar conhecimento prévio do contrato. Esta noção não se esgota na simples leitura do instrumento, fazendo-se necessária a clareza para possibilitar a compreensão pelo consumidor, quanto aos sentido e alcance da disposição contratual.

O segundo consiste na nulidade absoluta das cláusulas abusivas, enumeradas no artigo 51, rol não taxativo. Destaca-se a previsão do inciso IV, de proteção quanto às cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade”.

Além disso, o artigo 6º, V, da lei consumerista, instituiu como direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

As limitações e proteções impostas pelo Código de Defesa do Consumidor às condições contratuais passaram a ser adotadas como fundamento para revisão judicial dos contratos firmados entre consumidores e instituições financeiras. Especialmente quanto aos encargos praticados nos contratos de créditos bancários.

A submissão dos contratos bancários aos comandos do Código de Defesa do Consumidor foi expressamente tratada no artigo 3º, § 2º do CDC, ao definir que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Não obstante a clareza da previsão legal, houve grande resistência das instituições financeiras em aceitar a aplicação da norma consumerista aos contratos bancários. Principalmente porque as revisões judiciais dos contratos implicam, em muitos casos, a limitação de encargos, expurgo de capitalização de juros e até a condenação da instituição financeira na repetição do indébito.

O reconhecimento de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos firmados com instituições financeiras está consolidado. No Supremo Tribunal Federal, a questão foi revolvida no julgamento da

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 2591/DF16. E no Superior Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula 297/STJ17.

Ao longo de quase vinte anos de aplicação do CDC, os tribunais pátrios firmaram diversos entendimentos sobre a revisão dos contratos bancários. A análise evolutiva, das constantes alterações jurisprudenciais sobre o tema, revela ser imprescindível uma releitura das orientações hoje dominantes.

III A evolução da...

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