Direito deles ou nosso dever? O sofrimento animal sob a perspectiva da bioética
Autor | Alfredo Domingues Barbosa Migliore |
Cargo | Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo |
Páginas | 97-131 |
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As águas plácidas da enseada verde-esmeralda do vilarejo de Taiji, na costa do Japão ainda são as mesmas que, naquele outubro de 2003, apareceram em diversos jornais, revistas e reportagens televisivas de todo o mundo. Do alto de uma colina, uma equipe de ativistas da organização ambiental Sea Shepherd (em português, algo como "pastor do mar"), camuflada e oficiosamente, presenciou e documentou - em vídeo e fotos - uma cena chocante, depois conhecida como o "Massacre de Taiji".
Dezenas de golfinhos foram conduzidos e aprisionados na pequena enseada por pescadores da indústria local. Desorientados, famintos, estressados e aglutinados em um espaço diminuto, os animais não tiveram a menor chance de sobreviver. Foram exterminados vagarosamente; dizimados após debaterem-se por horas a fio nas águas rasas. Os pescadores cortavam os animais e os deixavam sangrar até morte; puxavam outros ainda vivos para fora d’água e os matavam a pauladas. No fim do dia, o tom verde-esmeralda deu lugar a um vermelho-escarlate. A enseada tranqüila tornou-se o beco da morte.
A imagem não é menos horrenda que a dos mustelídeos, ra-coon dogs, lobos e raposas, sendo esfolados vivos por caçadores de peles. Enquanto desidratam1e sangram até a inevitável morte, madames da sociedade vitoriana deixam suas opulentas
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mansões em cadillacs e rolls royces, cosmeticamente vestidas com as sedosas peles de martas, doninhas e arminhos, para um chá da tarde na Harods:
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Foto: Sea Shepherd Conservation Society (www.seashepherd.com)
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Foto: Swiss Animal Protection. Em: http://www.animal-protection.net/furtrade/chinafur.html. Atualmente, a Swiss Animal Protection (S.A.P.) denunciou as más-condições dos animais e a crueldade dos abates nas fazendas de pele existentes na China.
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Trecho de vídeo de animal esfolado vivo, ainda respirando e com muita dor, extraída do site Animal exploitation photo gallery, disponível em: www.all-creatures.org/anex/ raccdog.html
Os lemingues caminham aos milhões para a borda dos fiordes de onde se precipitam para a morte certa, desfiladeiro abaixo, direto nas gélidas águas escandinavas. O suicídio coletivo é uma espécie de autocontrole populacional da espécie, que se vê obrigada, em meio aos ataques de inúmeros predadores naturais e à falta de alimento, a migrar para qualquer lugar além das tundras a que está circunscrita.
Infelizmente, o homem interveio no papel da natureza e criou mecanismos artificiais para dizimar populações inteiras de animais que julgou nocivos ou abundantes em determinado ambiente. Assim, os coelhos, levados pelos colonizadores à Oceania, sem predadores naturais e competidores de pasto com os cangurus, espalharam-se como a horda de gafanhotos bíblica, pelas planícies australianas, até serem completamente exterminados por fazendeiros locais. Do mesmo modo, os ratos e camundongos, morcegos e pombas em grandes cidades.
O drama é ainda maior em relação aos cães e gatos recolhidos aos centros de zoonoses do país. Passado certo prazo sem ado-
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ção, a superpopulação de animais encarcerados e o alto custo de sua manutenção impõem uma trágica rotina de dar inveja aos mais célebres carrascos: incontáveis animais, que poderiam estar em lares e casas de famílias, dóceis e pacatos, são descartados, seja em câmaras de descompressão, seja em fornalhas gigantes, como aquelas que, dizem por aí, serviam para dizimar milhares de não-arianos, na Alemanha nazista. O holocausto humano não difere do canino: o mergulho nas labaredas incandescentes ou a asfixia por gases tóxicos é sem volta e encerra inesperado sofrimento2.
E, se é verdade que coelhos, ratos e cães abandonados têm o mesmo destino do lemingue, é justo e ético indagar se ao homem cabe a missão de impor sacrifícios populacionais, estabelecer parâmetros do razoável e ditar as regras do destino das outras espécies e criaturas a sua mercê.
Ademais, por que se condena a matança de golfinhos às dezenas em uma enseada do Japão e nada se fala sobre o extermínio dos ratos do subterrâneo das grandes cidades? Não somos nós os criadores de todas as incontroláveis pragas, sejam ratos, baratas ou pombos?
De qualquer modo, o s.r.d (sigla para "sem raça definida" ou vira-latas...) que perambula pelas ruas caóticas da metrópole não se precipita a frente de carros nas ruas da cidade, como os lemingues nos abismos nórdicos. Eis a diferença entre as situações.
O filme Jogos mortais é odioso, horripilante, cruel. As personagens são acorrentadas em um banheiro sórdido, fétido e escuro. Diante de inúmeras pistas para sua própria libertação, são obrigados a se digladiar em uma luta insana pela vida, com chances quase nulas de sobrevivência. Têm que matar um ao outro, cortar partes dos próprios corpos, arrancar os membros, esquarte-
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jar corpos em decomposição, para sobreviver a uma brincadeira sádica de um lunático assassino de nome Jigsaw. Non sense completo, como O Albergue, em que pessoas são caçadas vivas, como gazelas e impalas perseguidas pelo guepardo, no Serengeti.
As bilheterias ficaram lotadas e o público - parece difícil acre-ditar! - idolatrou ambos os filmes, tanto que a série Jogos mortais já tem, hoje, quatro episódios (e o quinto em fase de produção), e O Albergue também foi continuado. Trata-se do gosto pelo maugosto. Algo como a batalha entre gladiadores nas areias escaldantes do coliseu sob os urros da multidão em êxtase.
Nunca consegui entender, quando lia nos livros de história e nas velhas enciclopédias empoeiradas, que deitavam preguiçosas nas prateleiras mais altas da estante da sala, como gostava o ser humano de presenciar, desde a crucificação de inocentes, passando pelo esquartejamento dos condenados, à decapitação de reis e rainhas da antiga Inglaterra ou da Revolução Francesa. Achava que a falta de rádio ou televisão e os costumes da época eram determinantes nesse proceder.
Estava errado. A barbárie continua até os dias atuais e parece ter mais em comum com a natureza humana. Afinal, desde a farra do boi, festa típica de Santa Catarina, até as touradas espanholas; desde os safáris esportivos nas estepes do Masai Mara até as rinhas de galos ou pit bulls, tudo não passa da mesma vã e humilhante covardia, que, nos exemplos acima, tem por vítima o próprio ser humano, e, nos tempos modernos, parece continuar de forma incontida contra muitos animais, que também sentem dor e também sofrem, como nós.
Na farra do boi, o couro é arrancado, a perna cortada, o olho furado, o chifre serrado e o bicho perseguido, sem chance de sobreviver, em uma brutal analogia à malhação de Judas traidor de Jesus, conquanto pregue a Igreja o perdão incondicional e a nãoviolência contra todas as criaturas, humanas e não-humanas.
Nas touradas também não há chance. O touro entra fadado a morrer. Aquele é o seu destino, com uma espada cravada no coração pelas costas, sob a ovação dos espectadores. A luta é de-
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sigual. A batalha é sangrenta e o animal valente o quanto pode. Seu sofrimento jamais mereceu piedade.
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Foto: atuleirus.weblog.com.pt Foto: wspabrasil.com
O ser humano veio de hominóides vegetarianos, como os gorilas. O hábito de comer carne, existente também entre os chimpanzés, que se alimentam de cupins e pequenos macacos das florestas africanas, dizem os grandes estudiosos, foi um dos maiores catalisadores da evolução humana3. Por alguma razão especial, a inclusão da proteína de origem animal na dieta dos hominídeos resultou no progressivo desenvolvimento do cérebro e no salto evolutivo atual, como afirma o paleontólogo Richard Leakey4.
Esse hábito, que elevou o homem da base ao topo da cadeia alimentar, é, hoje, sustentado pelas imensas criações de bovinos, caprinos, suínos, aves e até cães em algumas partes do mundo. A matança que ocorre nos açougues, chamados pelos ingleses de slaughterhouses (cuja tradução para o vernáculo é algo como "casa de massacres"), gera polêmica. Milhares de animais, em condições precárias, são cortados mutilados e abatidos. Dias depois, estão sendo servidos nos mais renomados restaurants, com
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molhos feitos de frutas e legumes, em baixela de prata, e acompanhados de um bom vinho francês.
A imagem dos perus de Natal da indústria Butterball, filmados por ativista infiltrado do Peta (sigla, em inglês, para a associação denominada People for the Ethical Treatment of Animals), e que foi objeto de matéria em documentário televisivo produzido por essa entidade, chocou o mundo: viam-se os animais sendo atirados de forma vil contra as paredes do matadouro; suas pernas eram quebradas propositadamente, enquanto urravam de dor; as aves eram, frequentemente, agredidas de maneira covarde, antes do abate5. Não se trata de salvar a vida dos perus e acabar com a tradição natalina ou do célebre feriado america-no de Thanksgiving, mas acabar com a crueldade desnecessária, dizem alguns. Outros, mais radicais, defendem que o homem deve parar de comer a carne de outros animais, renegando seu hábito milenar. Não entraremos, aqui, nesse debate6.
A carne do bife Kobe é apreciada no mundo todo, por sua textura macia e tenra. Em alguns restaurantes, um pequeno pedaço do filé produzido a partir do gado Wagyu, no Japão, é vendido por milhares de dólares. Qual o preço desse luxo? Como o produtor consegue manter a produção em série dessa refinada carne?
A carne do gado Wagyu, normalmente...
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