Democracia e acesso à justiça no processo eletrônico

AutorGustavo André Eckhard - Clezio Saldanha dos Santos
CargoEspecialista em Administração da Justiça (Escola de Administração da UFRGS) - Doutor em Administração (Universidade Federal da Bahia); Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFGRS.
Páginas68-88

Page 68

1. Introdução

Diante da autorização, pela Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, para a utilização de meios eletrônicos no curso de processos vinculados aos Juizados Especiais Federais – criados pelo mesmo diploma legal – o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) editou, entre outros regulamentos, a Resolução n. 13, de 11 de março de 2004, que implantou, no âmbito dessa Corte, o sistema do processo eletrônico. Tal regulamento previu, em seu art. 2º, que “a partir da implantação do processo eletrônico somente será permitido o ajuizamento de causas pelo sistema eletrônico”1. Registre-se, nesse ponto, que a referida Lei n. 10.259/01 somente refere-se a meios eletrônicos ao tratar, em seu art. 8º, da intimação de sentenças, autorizando, também ali, a recepção de petições por meio eletrônico2. Inexiste qualquer referência a autos eletrônicos, virtuais ou coisa do gênero, como, também, não o há em qualquer outro diploma legal.

Page 69

A Resolução n. 13/2004 traz a solução para as situações em que o advogado, não dispondo de meios para acessar o sistema, comparece à Justiça Federal a fim de ajuizar ou dar andamento às suas ações judiciais. Prevê que “em cada Subseção Judiciária será instalada uma sala de autoatendimento, com acesso a sistema de escaneamento e computador ligado à rede mundial para uso dos advogados e procuradores dos órgãos públicos e consulta pelas partes”3. Determina o regulamento, também, que “se a parte comparecer pessoalmente, o seu pedido poderá ser reduzido a termo eletronicamente por servidor do Juizado Especial Federal”4.

Tal sistema, evidentemente, não tem como objetivo ser utilizado pelo público em geral – não profissionais do Direito, senão quando representado por advogado, ou, eventualmente, nos casos previstos de atermação5 por servidor. É do próprio texto do regulamento a previsão de que “são considerados usuários do Sistema os advogados, procuradores, serventuários da Justiça e magistrados...”6.

Ainda mais recentemente, o TRF4, encabeçando um movimento nacional da Justiça Federal no sentido de implantar o processo eletrônico nos Juizados Especiais Federais – o que se pode verificar pelo apoio a tal iniciativa pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pelo Conselho de Justiça Federal (CJF) e pelo STF, que, inclusive, tem noticiado a possibilidade de utilização de tal sistema –, publicou a Resolução n. 75, de 16.11.2006. Em tal regulamento, fica determinada, a partir de 31.03.2007, a utilização do processo eletrônico para todas as ações de competência dos Juizados Especiais Federais da 4ª Região. Entre as justificativas para tal implantação, fechada a exceções, está, conforme os seus próprios termos, “o inevitável avanço da virtualização do processo, tema objeto, inclusive do Projeto de Lei n. 5.828/2001, Substitutivo n. 71/2002, em trâmite no Senado”.

Enfim, o discutido sistema está em plena utilização, havendo vários processos em curso em meio estritamente digital. Conforme consulta a relatórios daquela ferramenta, são mais de 143.000 processos já distribuídos, entre as três Seções Judiciárias da 4ª Região (Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina). Isso sem falar da utilização nos demais Es-Page 70tados brasileiros. Não há, pois, que se discutir a validade e a utilidade do sistema, ultrapassado que vai estar o tema da legalidade.

Diante disso esse trabalho tem o objetivo de avaliar o processo eletrônico, sistema já implantado na Justiça Federal de Primeiro Grau da 4ª Região – e que vem sendo implantado no restante do país, bem como em instâncias superiores – como ferramenta para o ajuizamento de demandas de competência dos Juizados Especiais Federais. Parte-se do pressuposto de que, para a efetivação da democracia, é imprescindível a possibilidade de participação e o acesso de todos os cidadãos, indistintamente, aos meios disponibilizados pelo Estado Democrático de Direito para os fins que o justificam – bem como as obrigações daí decorrentes, para cidadãos e para o Estado. Isso sem perder de vista as divergências teórico-doutrinárias e históricas entre o “acesso à justiça”, enquanto sistema pelo qual se possibilita às pessoas, sem restrições, a reivindicação de seus direitos ou a solução de litígios, sob a tutela do Estado, com resultados individual e socialmente justos, e esse mesmo acesso como o mero direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação, como já destacavam Cappelletti e Garth (1988). Verificou-se, pois, considerando que o referido sistema tem sido implantado em caráter exclusivo para a propositura de ações, excluindo-se o meio tradicional, se existe, no processo eletrônico, a efetivação do acesso à justiça.

2. Revisão teórica
2. 1 Acesso à justiça

Entre as garantias constitucionais, aquelas associadas aos direitos fundamentais, inscrevem-se na previsão do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal Brasileira “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. É, conforme a lição de Silva7, “o princípio da proteção judiciária, também chamado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”. Refere esse autor que tal princípio constitui em verdade a principal garantia dos direitos subjetivos.

Melo e Vitagliano8 referem-se à função jurisdicional, a fim de explicar o “princípio da proteção judiciária” ou “princípio da inafastabilidade doPage 71controle jurisdicional”, sustentando que “é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substituiu, definitivamente, a atividade e vontade das partes”. Destacam esses autores que a Constituição Federal não regulamenta o acesso à Justiça (embora refiram “acesso ao Poder Judiciário”), tarefa essa que cabe às leis de natureza processual, sendo “perfeitamente lícito a estas criar modalidades processuais diversas, com características, pressupostos e conseqüências próprios”.

Conforme refere Cunha:

A maior ofensa ao direito à jurisdição é a denegação de justiça. Ela se verifica tanto na impossibilidade de acesso à jurisdição (impossibilidade formal ou material de estar em juízo), quanto na forma como esta se exerce (restrições legais ou práticas aos direitos de ser ouvido, se ver suas alegações apreciadas por um juízo isento, de utilizar e esgotar os meios de defesa). Tendo assumido o monopólio da prestação jurisdicional, o governo não pode, sem infração dessa promessa, criar óbices à solução judicial dos conflitos. A jurisdição é serviço público essencial, que deve estar disponível, pronta e plenamente, a todos que dela necessitem para a satisfação dos seus direitos9.

Nas palavras de Cappelletti e Garth10, que inauguraram o estudo moderno do acesso à Justiça, este “pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. Conforme esses autores, ainda:

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos11.

Page 72

Klippel12 ressalta que foi sempre a ação e a busca pela tutela jurisdicional, e não a omissão, que trouxeram benefícios para a própria positivação da ordem jurídica. Nesse sentido, é o agir que impulsiona a máquina estatal a exercer a sua função jurisdicional, a fim de dizer o direito ao caso concreto. O direito de ação é a forma imediata de consecução de um direito lesado ou em vias de lesão, e, paralelamente, a forma mediata de afirmação da ordem jurídica para toda a coletividade.

Rodrigues, citado por Alvim13, refere que os dois sentidos fundamentais da expressão “acesso à justiça” trazem a noção de que, primeiro, acesso à Justiça e acesso ao Judiciário são expressões sinônimas, e, segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão “justiça”, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano, sendo que o segundo engloba o primeiro14. Conforme Alvim15, o acesso à Justiça:

Compreende o acesso aos órgãos encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem como com a representação (em juízo) a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social. Além disso, o acesso só é possível com juízes vocacionados a fazer justiça em todas as instâncias, com sensibilidade e consciência de que o processo possui também um lado perverso que precisa ser dominado, para que não faça, além do necessário, mal à alma do jurisdicionado.

Leite16 entende que o termo “Justiça” tem, no Brasil, dois significados: um de valor, como o de liberdade e igualdade, e, o outro – mais comum –, de sinônimo de “Poder Judiciário”. Conforme o significado empregado,Page 73diferente é a perspectiva de acesso à Justiça. Cunha17, por sua vez, reitera a necessidade de cuidado em se diferenciar os termos “justiça” e “judiciário” ou “órgão do judiciário”. Frischeisen18 diferencia o acesso formal à justiça, no sentido de levar adiante a sua demanda, daquele acesso mais amplo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT