Da democracia formal à democracia substancial

AutorRosana Carrijo Barroso
CargoA autora é Advogada - Especialista em Direito Penal e Criminologia - Especialista em Direito Aplicado - Mestranda em Direito Constitucional na UniBrasil
1. Introdução

Este artigo pretende definir democracia como processo da formação da ordem social e também do Estado, a partir do pensamento de Hans KELSEN. Desde logo é mister precisar o caráter extremamente científico do autor que abstrai qualquer conteúdo valorativo em seus escritos. KELSEN trata da democracia essencialmente pelo seu aspecto formal, fundamentada na liberdade política em primeiríssimo lugar e na igualdade como pano de fundo, garantindo apenas a mesma possibilidade de participação de todos os indivíduos no governo.

O ideal de liberdade seria poder viver em sociedade sem a necessidade de submeterse a ninguém e a nenhuma regra, entretanto essa liberdade anárquica gera insegurança. Logo, o homem precisa atender a uma ordem social que regule suas relações com os demais membros da comunidade, ao mesmo tempo em que deve haver um órgão que centralize o poder. Nada mais adequado ao indivíduo do que obedecer às normas estabelecidas por ele próprio, identificando-se com o Estado. A democracia é a liberdade natural transformada em liberdade política.

Do ideal de democracia, ou seja, o povo sujeitando-se ao povo e a ordem social por ele constituída, o que poderia ser imaginado como democracia direta nos moldes traçados por Rousseau, é transportado à democracia real. Na democracia real a liberdade obrigatoriamente deve ceder força ao princípio da divisão de trabalho. Impraticável ouvir-se todas as vozes como nas assembléias dos tempos da Grécia antiga. Os cidadãos devem organizar-se em partidos políticos segundo seus interesses comuns e eleger seus representantes para assim formar um parlamento, assumindo o conceito de democracia indireta. Com certeza a idéia original de liberdade é relativizada à representação parlamentar.

Outra constatação se torna irrefutável, não há como concentrar todos os esforços e tarefas burocráticas, decisórias, deliberativas nas mãos do parlamento. A esse é mantida a criação das normas gerais e abstratas, contudo é premente a separação de poderes, delegando aos poderes executivo e judiciário a aplicação das leis oriundas da vontade popular. Outro golpe certeiro no ideal de liberdade mostrando-se ainda mais distante da realidade.

Como forma de minimizar a falta de legitimidade popular no momento da concretização da lei, ou seja, na execução da norma geral e abstrata, conforme os interesses do povo, em norma individual e concreta, a democracia se socorre do princípio da legalidade e da publicidade.

Da democracia formal à democracia social pautada na igualdade material dos governados, absolutamente repudiada por retratar, segundo KELSEN, uma deformidade conceitual do termo democracia, com intuito maléfico de mascarar os sistemas totalitários. A democracia é um governo do povo e não um governo para o povo, ilusão vendida por déspotas que justificam arbitrariedades em nome do interesse público, conceito indeterminado ou fórmula vazia em que tudo se encaixa facilmente.

Todavia, Luigi FERRAJOLI, acena com o ideal de democracia substancial ou também chamada de social como denominada por KELSEN a se referir ao totalitarismo, porém com uma nova proposta, como garantia dos direitos fundamentais positivados nas constituições modernas.

Os direitos fundamentais traduzem o Estado de Direito como limitador do poder da maioria num sistema democrático. O direito político de participação dos cidadãos nas discussões governamentais, base da democracia, é um direito consagrado constitucionalmente como direito fundamental, porém devendo ser ponderado diante de outros não menos importantes direitos fundamentais individuais.

Há um complexo embate entre o poder do povo e sua delimitação, trazendo novamente à tona o relevante papel da fundamentação das decisões judiciais, como forma de justificar as escolhas realizadas por aqueles que aplicam as normas, sejam em conformidade à vontade popular ou contrárias a ela, mas condizente aos direitos fundamentais.

2. A democracia formal de Hans Kelsen

O termo “democracia”, gravado pela teoria política da Grécia antiga, significa “governo do povo” (demos = povo, kratein = governo). O cerne do fenômeno político denominado pelo vocábulo era a participação dos governados na formação de uma ordem social, e conseqüentemente do Estado. O princípio de liberdade assume o sentido de autodeterminação política. E é nesta concepção que a democracia vem sendo adotada pela teoria política da civilização ocidental.

Democracia é um “governo do povo” e não como alguns sistemas totalitários defenderam e ainda defendem um “governo para o povo”. Um governo do povo supõe sua participação, na criação das normas gerais e abstratas que subordinará toda a sociedade. Distintamente dos governos que concentram todo o poder criativo da legislação nas mãos de uns ou alguns, sob o pretexto de agir em conformidade aos interesses dos demais, numa busca pela igualdade material. Para KELSEN trata-se de uma grande falácia prolatada por déspotas que justificam decisões arbitrárias com fórmulas vazias como “para o bem comum” ou “interesse público”, conceitos indeterminados em que atrocidades são facilmente ajustadas.

Liberdade e igualdade são os valores predominantes da democracia, a garantir influência dos indivíduos na formação da ordem jurídica a qual estará subordinado, assim como o Estado. A igualdade é referenciada sob o aspecto meramente formal, ou seja, como idêntica possibilidade de todos os indivíduos de se autodeterminarem. Norberto BOBBIO chama de isogonia, a igualdade de natureza ou de nascimento, que torna todas as pessoas iguais e igualmente dignas de governar2.

O objetivo da democracia, segundo KELSEN, não é a eficiência do governo, incluindo a melhora da vida de seus cidadãos – traduzido na promessa, então, de igualdade material, e sim garantir a máxima liberdade. Isto fica claramente evidenciado pelo fato da igualdade material – não a igualdade política formal – poder ser realizada tão bem ou talvez melhor em regimes ditatórias, autocráticos, do que em regime democrático.

O maior fundamento da forma de governo democrática, acrescenta BOBBIO, é o pacto negativo de não-agressão entre os cidadãos socialmente integrados e o dever de obediência às decisões coletivas (pacto positivo). O primeiro retira o indivíduo do estado de natureza, enquanto o segundo funda uma sociedade civil, ou Estado3.

2.1. Definição de democracia

KELSEN ao estudar o fenômeno democracia manteve uma postura totalmente científica, assim como agiu quando escreveu Teoria Pura do Direito, desprovida de qualquer preocupação axiológica. Sua intenção era apresentar a estrutura dessa forma de governo, aplicável a qualquer ordem jurídica, como técnica possível de produção de normas da ordenação, em que se caracteriza pela “identidade entre governantes e governados, entre sujeito (pluralidade de indivíduos constituindo uma unidade - sentido normativo) e objeto do poder (todos os indivíduos submetidos às normas), governo do povo sobre o povo”4.

Analisou todos os elementos componentes da democracia, a começar pelo povo como grupo de pessoas unidas por interesses comuns e passíveis de influência política (potência prática)5, então como partidos políticos6. Esses representados por um parlamento eletivo a partir do sufrágio universal e livre – abarcando o maior número possível de eleitores e tomando como método o sistema proporcional, com a finalidade de aglutinar representantes dos diferentes partidos e assim parcelas importantes da sociedade. Como fator relevante, discorre sobre o princípio da maioria, forma de votação que predomina nas decisões parlamentares.

O princípio da maioria tem como objetivo central, impedir o domínio de uma específica classe social, na medida em que a relação dialética entre maioria-minoria é altamente dinâmica, alternando a cada decisão proposta. Quanto maior o número dessa maioria, mais próxima estará a vontade individual de sua concretização.

Por outro lado, a minoria poderá constantemente estabelecer compromissos visando o mais alto grau possível de liberdade política. Hans KELSEN sugere até uma nova nomenclatura ao princípio da maioria, princípio majoritário-minoritário7, justamente porque reflete uma inabalável acomodação de opiniões divergentes em favor de soluções que as une. O princípio da maioria se revela como um princípio de compromisso, de compensação das antíteses políticas8.

Qualquer integração social, em última análise, só se torna possível em razão da tolerância recíproca patenteada pelos compromissos assumidos numa perfeita coalizão partidária, não como um mal, mas um avanço.

2.2. Características que distinguem a democracia da autocracia

A democracia tem características próprias que a coloca em vantagem como forma de governo se comparada à autocracia em que o governante representa uma autoridade de valor absoluto e superior aos governados, que a eles é imposto. Não se submete à ordem social e muito menos a críticas.

Diferente da posição relativa do governante em um sistema democrático, o qual é imanente à comunidade e não a ela transcendente, com mandato e competência limitados, subordinado à ordem social e por ela responsável; eleito por breves períodos; designado por meio de um processo racional e publicamente controlável.

O governo democrático é dinâmico, possibilita a ascensão de qualquer membro da comunidade à posição de governante e objetiva constituir uma comunidade de iguais, tendo como princípio o ajustamento harmônico.

Sem dúvida nenhuma, a democracia parece ser um organismo racional do poder político, enaltecendo a liberdade...

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