Os desafios do sistema de governança da saúde global na pandemia de COVID-19: Limitações atuais e possibilidades de reforma/The Challenges of the Global Health Governance System in the Covid-19 Pandemic: Current Limitations and Possibilities for Reform.

AutorAlmeida, Paula Wojcikiewicz

Introdução

A pandemia de COVID-19 abalou fortemente o sistema de governança da saúde global. A crise sanitária internacional despertou reflexões latentes acerca da capacidade de responder adequadamente a pandemias, instigando a comunidade internacional a repensar alternativas e mecanismos capazes de conter a crise desvelada em 2020, de forma a evitar sua posterior deflagração. Embora sua magnitude tenha surpreendido, o potencial para a ocorrência de uma crise sanitária internacional já havia sido identificado na última década (1).

O campo da saúde tem ganhado cada vez maior projeção nas relações internacionais, especialmente desde que a globalização de epidemias, como de H1N1, de EBOLA, e, no momento, de COVID-19, se tornou mais frequente (2). O preâmbulo do tratado fundador da Organização Mundial da Saúde (OMS), também chamado de Constituição da OMS, conceitua saúde como "o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade" (3). Considerando esse amplo escopo, percebe-se como preocupações de saúde pública atravessam questões políticas, econômicas, sociais e ambientais (tais como educação, pobreza, fome e segurança) (4). Saúde pública pode, inclusive, ser conceituada como direito humano, na medida em que depende da preservação de condições de dignidade humana e justiça social (5), além de regular questões diretamente relacionadas a direitos humanos, como medicamentos, ferramentas e procedimentos médicos (6).

Essas relações complexas que envolvem saúde pública em nível internacional (e a inerente preocupação com propagação de doenças infecciosas inter e intra Estados) refletem-se no grande número de regimes jurídicos e políticos aplicáveis à saúde, desenvolvidos e administrados por atores diversos, e sobrepostos em intricados padrões de interação (7). A relação entre esses regimes e atores internacionais (8) é igualmente complexa e requer uma normativa regulatória própria, uma vez que a escolha quanto aos diversos possíveis modos de regulação pode influenciar de maneira positiva ou negativa os sistemas nacionais de saúde e agendas políticas, entre outros (9). Ademais, o sistema normativo de governança da saúde global também conta com uma sobreposição de normas, que devem ser compreendidas de forma holística. Tanto instrumentos vinculantes quanto não-vinculantes devem ser considerados em seu impacto e influência prática nos resultados da regulação da saúde global (10).

Em consequência, a busca por modelos de regulação global que pudessem nortear a cooperação internacional em saúde global tornou-se frequente (11). Com efeito, os modelos de governança da saúde global fazem uso de um sistema integrado de variados instrumentos normativos, instituições competentes e processos (12). Fundamentam-se, assim, na atuação coletiva entre Estados, organizações internacionais e atores não-Estatais, com a finalidade de lidar com os desafios ao acesso efetivo à saúde (13).

Dentro da variada gama de atores envolvidos na governança da saúde global, destaca-se o papel especializado e essencial da OMS enquanto "coordenadora" da cooperação entre os demais (14), garantindo atuações em harmonia (15) por meio de seu poder regulamentar (16). Criada em 1946, no período de ascensão do multilateralismo, como a principal agência especializada em saúde pública em nível global, a OMS possui um papel normativo central na definição e uniformização de standards internacionais relacionados ao campo da saúde (17). A Organização possui mandato direto para atuar em pandemias (18), como a crise sanitária da COVID-19 e desempenha um papel central na vigilância, avaliação de risco e reação a pandemias, visando garantir uma resposta ao mesmo tempo eficaz na esfera internacional, e proporcional às competências de outras instituições e atores (19).

Apesar disso, os mecanismos de coordenação entre a OMS e as demais organizações intergovernamentais, Estados e atores não-estatais nem sempre são capazes de conter todas as preocupações sobre saúde pública global (20). Isso porque, este é um campo regulatório complexo por diversos motivos. Primeiro, pela multiplicidade de atores que possuem influência nos processos decisórios sobre saúde (21). Segundo, pela complexidade do financiamento institucional desses atores (22). Terceiro, pela ingerência da gestão da saúde pública em outras áreas, como economia e justiça social (a exemplo dos setores de transporte, comércio e patentes em medicamentos) (23). Por fim, pela "governança para a saúde", modelo de governança adjacente, que busca influenciar a governança de outros setores de maneira a impactar positivamente na saúde humana (24).

Por isso, lacunas já podiam ser percebidas na governança da saúde global contemporânea (25), tendo sido evidenciadas com maior potência durante a crise do novo coronavírus de 2020 (COVID-19) (26). Apesar do enfrentamento da pandemia ter movido esforços em todo o globo, percebeu-se, ao invés de uma resposta coordenada, diversas (e mesmo divergentes) abordagens adotadas de acordo com a política interna de cada Estado. Desse modo, a crise global causada pela pandemia de COVID-19 sinalizou, também, alguns desafios ao arranjo institucional do multilateralismo contemporâneo (27).

Por essas razões, o presente artigo busca analisar as limitações do sistema de governança da saúde global na pandemia de COVID-19 (I), bem como propor alternativas viáveis para um melhor funcionamento do referido sistema em pandemias (II).

  1. OS LIMITES DO SISTEMA DE GOVERNANÇA DA SAÚDE GLOBAL NA PANDEMIA DE COVID-19

    O papel da OMS na regulação da saúde global e, especificamente, na gestão da crise COVID-19, pode ser dividido em quatro funções primordiais, quais sejam: produzir normas e standards em saúde global, fornecer apoio e gerenciar a cooperação técnica entre os Estados, em qualquer nível de desenvolvimento; levantar e gerir o financiamento destinado ao campo da saúde; e coordenar as respostas às emergências de saúde global (28).

    A função mais evidente é a produção normativa, pela qual desenvolve normas e standards para regular variados aspectos da saúde global. O artigo 2 da Constituição da OMS prevê mecanismos de tomada de decisão que autorizam seus órgãos derivados, em particular a Assembleia da Saúde, a elaborar standards internacionais em saúde global (29). A Assembleia, portanto, possui o poder de criar normas por maioria dos membros presentes e votantes, sendo possível que um Estado demonstre seu desacordo, por rejeição ou apresentação de reservas.

    A normativa da saúde no âmbito global compreende tanto instrumentos normativos vinculantes quanto não-vinculantes (soft law), que devem ser implementados e cumpridos por uma multitude de atores (30). Atendo-se à OMS, os mecanismos de seus órgãos decisórios para a elaboração normativa são eminentemente técnicos, sendo que alguns deles mereceram especial destaque durante a crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19: o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) e as recomendações específicas emitidas pela OMS no contexto da pandemia (31). As regras do Regulamento, que devem ser seguidas pelos Estados membros, encontram aplicação à luz de instrumentos não vinculantes adotados pelo Diretor-Geral da OMS e da resolução da 73 Assembleia da Saúde, editadas após a declaração de "emergência de saúde pública de importância internacional" de janeiro de 2020.

    No entanto, essa função normativa padece de limitações, conforme evidenciado na pandemia de COVID-19. Existem não apenas obstáculos intrínsecos ao desenho normativo e institucional da organização, mas também limitações do sistema de governança da saúde global em coordenar respostas globais a emergências sanitárias, que acabam por comprometer a resposta da OMS em pandemias. A respeito, notou-se que o caráter não-vinculante das recomendações emitidas pela OMS contribuiu para a adoção de posturas unilaterais pelos Estados (B), nem sempre em conformidade com os instrumentos de cumprimento obrigatório da OMS (A).

    1. Obstáculos para a implementação do RSI: a ausência de mecanismos de compliance e enforcement

      Os regulamentos são um tipo especial de instrumento normativo da OMS. Até o momento, a organização já adotou dois regulamentos, sendo o mais importante o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) (32). São obrigatórios e aplicáveis em todos os Estados membros, sem a necessidade de procedimentos internos de incorporação (Art. 21 e 22 da Constituição). Seu caráter vinculante se reflete na necessidade de uma gestão centralizada e uniforme das regras internacionais sobre os principais aspectos da saúde pública (33).

      Logo, tal como prevê a Constituição da OMS, o RSI é vinculante para todos os Estados membros e não necessita de incorporação na ordem jurídica doméstica para entrar em vigor. No caso do Brasil, o país optou, ainda, por promulgar as disposições do Regulamento por meio do Decreto No 10212/2020 (34), que incorpora o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58 Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005 (35).

      No âmbito internacional, o RSI entrou em vigor em 2007 (36) e, desde então, tornouse o instrumento principal capaz de estabelecer regras claras a serem seguidas em casos de "emergência de saúde pública de importância internacional" e de regular as crises sanitárias com dimensão internacional--como a atual pandemia de COVID-19 e crises anteriores, como a epidemia EBOLA na República Democrática do Congo.

      O objetivo do RSI, conforme previsto em seu artigo 2, é o de prevenir, proteger, controlar e trazer uma resposta às crises sanitárias internacionais. Neste propósito, compreendem-se as obrigações do RSI, que devem ser cumpridas pelos Estados membros a fim de contribuir para uma resposta eficaz à pandemia de COVID-19. Os artigos 6 e 7 do RSI vinculam os Estados membros a notificarem a OMS, no prazo de 24 horas, acerca de eventos que possam constituir uma "emergência de saúde pública de...

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