A desconsideração da personalidade jurídica na falência

AutorPaulo Fernando Campos Salles de Toledo
Páginas222-233

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1. Nos autos da falência de C. M. Industria e Comércio Ltda., a credora G.-N. Comercial e Exportadora Ltda. requereu fosse desconsiderada a personalidade jurídica da falida. Alegava ter ocorrido fraude, praticada pelos sócios desta última, em benefício da sócia F., cujos diretores eram os mesmos da falida.

A falida impugnou a pretensão, reiterando manifestações anteriores, provocadas pela mesma credora. Salientou que sua sócia F. igualmente habilitou-se na falência, tendo sido determinada a inclusão do crédito, no valor de R$ 3.282.487,53. Acrescentou não ter havido infringência à lei e ao contrato social, nem excesso de poderes ou má-fé, e sim somente um insucesso comercial.

A douta Promotoria de Justiça pronunciou-se favoravelmente à credora, propondo, mais, fossem responsabilizadas todas as sócias da falida, pelo abuso de direito que entendia ter sido cometido.

O n. Síndico exarou cota em que reiterava sua posição antes expressa, no mesmo sentido da promoção ministerial.

A MM. Juíza, apreciando a hipótese, considerou ter a falida agido fraudulentamente, beneficiando sócios, furtando-se ao pagamento de obrigações assumidas e contraindo empréstimos ciente de que não seriam pagos. Desconsiderou, por isso, a personalidade jurídica da falida, para responsabilizar seus sócios, e determinou o arresto de bens suficientes para o pagamento dos créditos.

Contra essa r. decisão, E. S/A Indústria e Comércio, uma das sócias da falida, interpôs agravo de instrumento, com pedido de liminar. Alega não ter tido ciência do processo, não tendo sido observado o due process of law, sendo desrespeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Argumenta que as três sócias participavam igualitariamente do capital da falida, não se podendo falar em controle. Aduz não ter havido favorecimento à credora C.

Observa ainda ser inaplicável a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ante a inexistência de fraude ou infração à lei ou ao contrato. Acrescenta que, não tendo exercido a gestão da falida, não poderia ser responsabilizado pelas obrigações sociais, sendo, nesse ponto, nula a r. decisão, porque não fundamentada. Pleiteia a concessão de liminar, dando-se efeito ativo ao agravo, para suspender-se a eficácia da r. decisão agravada, sendo, a final, pro-

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vido o recurso, para afastar-se a desconsideração.

A liminar foi indeferida. Considerou o E. Desembargador Relator que "a agravante e as demais sócias serviram-se da falida para obter vantagens e causar prejuízos a terceiros". Anota ser desnecessária a propositura de demanda própria, e consigna que a defesa apresentada pela falida nos autos da falência, "aproveita a todas as suas sócias".

Tendo em vista o relatado, honraram-me as sócias da falida, por intermédio de seus doutos advogados, com um pedido de Parecer, objetivando o correto equacio-namento jurídico da hipótese. Para isso, tecerei, a seguir, algumas considerações de ordem genérica, visando situar os temas a serem abordados, passando, após, ao exame do caso concreto, e, finalmente, oferecendo respostas aos quesitos apresentados pelas Consulentes.

Teoria da desconsideração da personalidade jurídica

2: A personalidade jurídica, esta criação do gênio humano que, de certo modo, o equipara ao Criador,1 volta-se, às vezes, por artes do próprio homem, contra aquele que a gerou. Deixa à margem seus atributos e suas finalidades, e transmuda-se em instrumento a serviço da iniqüidade. A ordem jurídica, constatado o desvio, busca, por seu turno, os mecanismos de correção de rumos. E desconsidera, quando for o caso, a personalidade jurídica mal utilizada.

A matéria é objeto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, de que foi precursor, na doutrina, Rolf Serick, em trabalho apresentado à Universidade de Tübingen,2 em 1953. Na jurisprudência, bem antes disso, em fins do século XIX, verificou-se o caso Salomón vs. Salomón & Co., geralmente apontado como o marco inicial.3 Nele, pelas decisões das instâncias inferiores, atingira-se o patrimônio do controlador da sociedade, superando-se a personalidade jurídica desta. Tais decisões, no entanto, foram reformadas pela House of Lords. Estava, no entanto, aberto o caminho.

Vale, nesse ponto, recordar que a pessoa jurídica apresenta, como uma de suas peculiaridades fundamentais, a circunstância de ter um patrimônio próprio, distinto daquele das pessoas que a compõem. Bem por isso, é meio jurídico hábil à limitação da responsabilidade: não é preciso que o sócio comprometa seu patrimônio pessoal pelas dívidas sociais (o que, naturalmente, varia conforme o tipo societário adotado).

Ora, a desconsideração da personalidade jurídica ataca exatamente o núcleo da pessoa moral. Põe de lado a individualidade de seu patrimônio e, como se não fosse ele a garantia dos credores da sociedade, busca, em outras esferas patrimoniais, novas bases de responsabilidade. Para ser ainda mais claro: outros patrimônios passam também a responder pelas obrigações sociais. Ou, inversamente, pelos débitos dessas pessoas, passa a responder igualmente o patrimônio da sociedade.

Para que essas conseqüências aconteçam, e tenham respaldo jurídico, é neces-

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sário, obviamente, que uns tantos requisitos sejam preenchidos. Para enunciá-los é conveniente ter em vista as principais concepções a respeito da teoria em foco.

As duas vertentes fundamentais

3. Na síntese de Fábio Ulhoa Coelho,4 são duas as vertentes fundamentais em que se divide a doutrina a respeito da desconsideração da personalidade jurídica. De um lado, a subjetiva, fundada na conduta fraudulenta do agente. De outro, a objetiva, centrada na ocorrência de confusão patrimonial.

Note-se, a propósito, que, em ambas as hipóteses, há um desvio de função da pessoa jurídica. E, naturalmente, a fraude é elemento comum a boa parte das situações concretas em que se justifica desconsiderar a personalidade jurídica. A grande distinção está em que, no primeiro caso, deve-se comprovar a ocorrência de fraude. No segundo prescinde-se do exame da conduta dos sujeitos, fazendo-se uma análise objetiva da situação.

Pode-se acrescentar, sem descer a maiores particularizações sobre o tema, já que não se pretende aqui exaurir as possibilidades de classificação das diversas construções teóricas existentes,5 uma terceira alternativa. Refiro-me à subcapitalização, ou seja, à inexistência de capital adequado para o desenvolvimento normal das atividades, em especial ao ser constituída a sociedade.6

A confusão patrimonial

4. Este, de acordo com Fábio Konder Comparato, o critério fundamental. E, consigna o autor expressivamente, "compreende-se, facilmente, que assim seja, pois, em matéria empresarial, a pessoa jurídica nada mais é do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juizes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral".7

A grande vantagem da aplicação dessa técnica reside na facilitação da prova. Provar a fraude é das tarefas mais difíceis da atuação processual, o que leva não apenas a demoras, mas a incertezas quanto ao resultado. Por outro lado, constatar que os patrimônios de A e B se confundem é procedimento menos complexo e mais seguro, na medida em que se baseia em dados objetivos.

A verificação da fraude

5. Este o critério usualmente mais seguido. Implica, é certo, em maior dispendio de energia das partes, porque exige a produção de provas contundentes. Permite, no entanto, abranger todas as hipóteses, de impossível enumeração, em que a fraude do agente faz da pessoa jurídica um escudo para encobrir ser ele o real sujeito dos negócios. A pessoa jurídica é aqui utilizada para limitar indevidamente a responsabilidade do agente, em prejuízo daqueles que com ele contratam.

As sanções aplicáveis

6. Conforme se adotar um ou outro dos critérios apontados (objetivo ou subjetivo), diferentes serão as conseqüências jurídicas.

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Tratando-se de confusão patrimonial, a solução põe-se no plano da ineficácia relativa. Esta a sanção legal aplicável. A análise do negocio jurídico deve efetivar-se em diferentes níveis, adotando-se o procedimento a que Antonio Junqueira de Azevedo chama de "técnica de eliminação sucessiva": "Essa técnica consiste no seguinte: primeiramente, há de se examinar o negocio jurídico no plano da existência e, ai, ou ele existe, ou não existe. Se não existe, não é negocio jurídico, é aparência de negocio (dito 'ato inexistente') e, então, essa aparência não passa, como negócio, para o plano seguinte, morre no plano da existência. No plano seguinte, o da validade, já não entram os negócios aparentes, e sim, somente os existentes; aí, nesse plano, os negócios existentes serão, ou válidos, ou inválidos; se forem inválidos, não passam para o plano da eficácia, ficam no plano da validade; somente os negócios válidos continuam e entram no plano da eficácia. Nesse último plano, por fim, esses negócios, existentes e válidos, serão ou eficazes ou ineficazes (ineficácia em sentido restrito)".8

Quer isto dizer que os negócios que levaram à confusão patrimonial existem e são válidos. Não se discute sua validade. Não são nulos nem anuláveis. Apenas não geram efeitos em relação aos credores, por eles prejudicados. Para estes, é como se os negócios não tivessem sido praticados. Os atos geradores de confusão patrimonial não produzem efeito, com relação a eles.

Como decorrência, a própria personalidade jurídica, que seria o obstáculo para se atingir o patrimônio do efetivo agente do negócio, é desconsiderada. Se reconhecida a personalidade, os patrimônios estariam separados, e não poderiam ser atingidos para fins de responsabilização de seu titular. Desconsiderada a personalidade, ante a ineficácia relativa do negócio, o patrimônio do sócio pode ser objeto de constrição, como se a pessoa jurídica não tivesse sido constituída, e...

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