A desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil não se aplica à recuperação judicial

AutorMárcio Souza Guimarães
Páginas51-71
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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
NÃO SE APLICA À RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Márcio Souza Guimarães1
Introdução
O direito das empresas em dificuldade tem por função responder
ao risco inerente à atividade empresária. Inúmeros fatores econômicos,
sociais, financeiros, jurídicos, sociais, dentre outros, podem levar o
empresário (ou a sociedade empresária) ao enfrentamento de uma crise, de
maior ou menor proporção. Diante de cada caso, o diagnóstico pode levar
ao seu encerramento, com a falência, ou seu reerguimento, com a
recuperação judicial ou extrajudicial.
Iniciado o processo de insolvência empresarial, há um natural
interesse dos credores e coletividade alcançada em verificar as causas da
crise da empresa, podendo dispertar a suspeita de fraude pelos gestores,
sócios (controladores ou não) e terceiros, o que é legítimo. Entretanto, é
necessário o manejo dos instrumentos corretos para tanto, não sendo a
desconsideração da personalidade jurídica um instituto “coringa” que se
presta sempre à coibição de desvios perpetrados, especialmente na
recuperação judicial, como desenvolveremos no presente ensaio.
1. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica
A legislação brasileira disponibiliza diversos instrumentos de
controle da atuação do empresário (e sociedade empresária), considerando
a importante função social desempenhada em atividades desta natureza,
1 Professor de Direito Comercial e Coordenador do Núcleo de Direito de Empresa e Arbitragem
da Escola de Direito Rio da FGV - Fundação Getúlio Vargas. Doutor pela Université Toulouse
1 Capitole (Centre de Droit d es Affaires). Professor visitante da Université Paris 2 Panthéon-
Assas. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen (Suíça). Professor visitante
(FGV) na Harvard Law School. Acadêmico fundador da Academia Brasileira de Direito Civil.
Foi v ice-presidente da Comissão Especial de Arbitragem da OAB Nacional. Ex-membro do
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
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que impacta não apenas aqueles que diretamente a exercem, mas toda a
coletividade.
Mesmo passados muitos anos da previsão legal dos institutos de
responsabilização, verifica-se ainda certa dificuldade em diferenciar a
responsabilização dos sócios e administradores de uma sociedade
empresária (a) e a desconsideração da personalidade jurídica (b). Ainda
que ambos tenham como objetivo final a responsabilidade patrimonial de
determinados agentes, cada um possui técnicas e pressupostos legais
distintos.
1.1. Os mecanismos de responsabilização dos sócios e
administradores
Há mais de cem anos, o Código Civil de 1916, estabeleceu
expressamente no direito brasileiro o princípio da autonomia patrimonial.
De acordo com o art. 20 daquele diploma2, a pessoa jurídica possui
existência distinta da de seus membros, sendo capaz de deveres e direitos
próprios3. Como consequência, possui também responsabilidade
patrimonial própria, de modo que, via de regra, responde por seus débitos
dentro dos limites de seu patrimônio4, ficando a salvo o patrimônio
individual dos sócios.
Nesse sentido, Pontes de Miranda5 já lecionava que:
Ser pessoa é ser capaz de direitos e deveres. Ser
pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres,
separadamente; isto é, distinguidos o seu patrimônio
e os patrimônios dos que a compõe, ou dirigem.
2 Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.
3 Como tivemos a oportunidade de escrever: “Os dispositivos do Código Comercial (1850)
referentes às sociedades davam margem à dúvida sobre a consideração da personalidade jurídica,
ao asseverar que dentre os sócios, ao menos um deveria ser comerciante, nos termos dos artigos
311; 315 e 317. Em 1916, o Código Civil dirimiu qualquer controvérsia ao indicar o nascimento
da personalidade jurídica (artigo 18), bem como ao asseverar que as pessoas jurídicas têm
existência distinta da dos seus membros (artigo 20). O mesmo caminho foi percorrido pelo Novo
Código Civil, nos artigos 45 e 985” (GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos Modernos da
Teoria da Desconsideração da Persona lidade Jurídica . Revista da EMERJ. v. 7, n. 25, Rio de
Janeiro: EMERJ, 2004, p. 231.
4 Exceto nos modelos societários em que a responsabilidade dos sócios é ilimitada, como na
sociedade em nome coletivo (art. 1.039 do Código Civil).
5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito P rivado. t. I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 288.

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