A sociedade cooperativa no Código Civil de 2002: uma análise histórico-legislativa

AutorAlexandre Ferreira de Assumpção Alves
Páginas173-240
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A SOCIEDADE COOPERATIVA NO CÓDIGO CIVIL DE
2002: UMA ANÁLISE HISTÓRICO-LEGISLATIVA
Alexandre F erreira de Assumpção Alves1
Introdução
O estudo tem por objetivo analisar as características da sociedade
cooperativa apresentadas no art. 1.094 do Código Civil de 2002, em
perspectiva histórico-legislativa e em cotejo com as disposições da
legislação especial vigente, isto é, a Lei nº 5.764/71, bem como relacioná-
las com as características de outros tipos societários, de modo a sublinhar
particularidades deste tipo societário. Será realizado o exame pontual da
legislação cooperativista, desde 1907, enfatizando traços distintivos entre
os diplomas e a política intervencionista do governo a partir de 1932, que
se manteve mesmo após a redemocratização em 1946.
Adota-se o método dedutivo a partir da premissa maior quanto ao
tratamento das sociedades cooperativas no Código Civil, para enfatizar
suas características e formar uma dedução quanto a singularidade deste
instituto, mormente quando comparado com outras espécies de sociedade.
A delimitação temática da exposição ao Código Civil, no bojo do
tema central desta obra comemorativa aos vinte anos da promulgação da
Lei nº 10.406, de 2002, não impede a incursão na perspectiva histórica do
instituto da cooperativa, desde sua positivação em 1907, até o advento da
Lei de 1971. Nesta toada, impõe-se averiguar a posição hierárquica das
disposições do Código Civil em cotejo com a lei especial, diante das
disposições dos artigos 1.093 e 1.096 daquele diploma.
Seguindo-se a mesma ordem dos incisos do art. 1.094, apresenta-
se ao leitor os seguintes aspectos a serem versados no texto: (i) tratamento
diferenciado ao capital social, que não se apresenta como fixo e sim
variável, ou a própria dispensa dele, ao contrário da sociedade do tipo
1 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Associado
nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UERJ. Professor Titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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simples ou de outros tipos societários empresariais; (ii) a noção própria de
“pluralidade” societária na cooperativa, que não se adequa aos tipos
pluripessoais, nos quais basta o concurso de dois ou mais sócios para a
constituição da pessoa jurídica; (iii) a impossibilidade de concentração do
capital social na pessoa de um ou alguns sócios, diante da limitação do
valor das quotas a serem subscritas no capital; (iv) peculiaridade da regra
quanto a cessão das quotas do capital de modo a preservar em grau máximo
a affectio societatis entre os cooperados; (v) prevalência do critério
fundado na presença do sócio nas deliberações para aferição tanto do
quórum de instalação quanto de deliberação, afastando-se a regra geral
quanto a “maioria do capital” para a aprovação das matérias (arts. 999 e
1.010 do Código Civil), fato que se relaciona com (vi) o cômputo dos votos
por cabeça nas deliberações, ao contrário do sistema referenciado na
participação do sócio no capital, representando uma verdadeira democracia
assemblear, que afasta as figuras do sócio majoritário em oposição ao do
minoritário; (vii) o primado do trabalho sobre o capital, na medida em que
os resultados não serão distribuídos na proporção direta da participação no
capital (quotas), quando existentes, mas sempre tendo como referência o
valor das operações efetuadas pelo sócio e, por fim, (viii) a existência
obrigatória no patrimônio de um fundo de reserva, que se manterá
indivisível entre os sócios para ser utilizado nos casos previstos em lei.
Advirta-se ao leitor que as características acima não são
exaustivas, eis que a Lei nº 5.764/71 enumera outras em seu art. 4º; todavia,
por fugirem ao escopo da proposta, serão simplesmente mencionadas2 ou,
eventualmente, tratadas de modo transversal na exposição.
Por fim, antes da apresentação das conclusões do estudo, adentra a
exposição no exame da responsabilidade dos sócios prevista no art. 1.095
e os desdobramentos da escolha pela responsabilidade limitada ou
ilimitada.
2 Destacam-se no art. 4º da Lei de Cooperativas as seguintes características não mencionadas no
art. 1.094 do Código Civil: (i) são sociedades de pessoas, (ii) com forma e natureza jurídica
próprias, (iii) natureza civil (“simples” conforme a nomenclatura adotada pelo art. 982, parágrafo
único, do Código Civil), (iv) não sujeitas à falência, (v) constituídas para prestar serviços aos
associados (cooperados), (vi) indivisibilidade do Fundo de Assistência Técnica Educacional e
Social; (vii) neutralidade política e proibição de discriminação religiosa, racial e social; (viii)
prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da
cooperativa; (ix) área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle,
operações e prestação de serviços.
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1. A origem das cooperativas e sua introdução no Brasil
Esta seção se dedica a uma breve exposição da origem do
cooperativismo na Inglaterra na primeira metade do século XIX, sua rápida
expansão por outros países e as primeiras cooperativas que atuaram no
Brasil ainda naquele século, sob o influxo dos princípios cooperativos, mas
ainda sem uma legislação própria.
A origem do cooperativismo está associada a uma reação de
trabalhadores ocupados na indústria têxtil inglesa contra as péssimas
condições de trabalho e remuneratórias a que estavam sujeitos, em parte
advindas do êxodo rural e da grande oferta de mão de obra, o que barateava
seu custo e proporcionava a exploração pelos empregadores, alavancada
pela ausência de uma legislação trabalhista protetora à época. No ano de
1844, na localidade de Rochdale, em Manchester, interior da Inglaterra, 28
operários tecelões, dos quais uma mulher, decidiram unir as parcas
economias que conseguiram amealhar para constituir uma sociedade
denominada “Sociedade dos Probos de Rochdale”, que se dedicaria à
compra e venda de artigos adquiridos por eles, como manteiga, farinha de
trigo, aveia e velas de sebo. Os empreendedores perceberam que o preço
de varejo não lhes permitia comprar a mesma quantidade de artigos e a
solução que se apresentava era a aquisição em maiores quantidades de
produtos (atacado), pois isso reduzia o preço final nas negociações,
permitindo distribuir a vantagem auferida entre todos os associados de
modo igualitário. Estava lançado o gérmen da cooperativa de consumo, ou
seja, dedicada à compra em comum de artigos para consumo pelos
cooperados. Somente com a união de esforços e cabedais seria possível
obter dignidade e alguma vantagem naquele ambiente de opressão e
miséria.
O diferencial da Sociedade dos Probos de Rochdale foi a
preocupação dos fundadores em não reproduzir internamente as mesmas
características do modelo societário da época (e até hoje vigente em sua
quase totalidade) no qual o maior investidor tem o poder de controlar a
sociedade e os demais sócios ficam subordinados ao seu poder decisório.
Ao elaborarem os estatutos da sociedade, estavam presentes valores como
honestidade, solidariedade, ajuda mútua, responsabilidade, democracia,

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