Descumprimento da Transação Penal e Detração

AutorMarcelo Gonçalves Saliba
CargoPromotor de Justiça Mestrando pela Faculdade de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná e de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos
Páginas5-9

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1. Transação penal

Inicialmente se faz necessário tecer alguns comentários a respeito da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais, por sua importância para o sistema penal e processual brasileiro, que estabeleceu um marco no direito, ante seu caráter despenalizador e busca da solução consensual dos conflitos.

A Lei dos Juizados Especiais Criminais veio a dar efetividade ao artigo 98, inciso I, da Constituição Federal e minimizar a intervenção do Poder estatal, bem como agilizar e simplificar o procedimento e julgamento para as infrações penais de menor potencial ofensivo. O avanço foi significativo, contudo entendemos que poderia ter ido além em diversos outros pontos, em busca da resolução das lides penais.

As infrações penais de menor potencial ofensivo foram limitadas, inicialmente, às contravenções penais e aos crimes com pena máxima não superior a um ano, excetuados aqueles que a lei preveja procedimento especial, consoante artigo 61 da mencionada legislação. Tímida, nos pareceu, a definição, vez que já em 1995 o sistema judiciário brasileiro estava atravancado pelas inúmeras ações penais e a lei poderia ter aumentado o leque dos delitos de menor potencial ofensivo, sem qualquer prejuízo ao sistema repressivo, já que a severidade das punições penais não é causa determinante para diminuição da criminalidade1. Em 2001, com a entrada em vigor da Lei 10.259, que criou os Juizados Especiais Criminais Federais, o conceito de infrações de menor potencial ofensivo foi alargado para todas aquelas com pena não superior a dois anos, posicionamento que nos parece hoje sedimentado2.

Por óbvio, não se pode deixar de reconhecer como válida a preocupação de Cezar Roberto Bitencourt a respeito da utilização indiscriminada ou a elevação exagerada do conceito de infrações de menor potencial ofensivo para fins de transação penal, que implicará violação de inúmeras garantias penais-constitucionais, tais como o devido processo legal, ampla defesa e presunção de inocência (Bitencourt, 2003, p. 526). Todavia, não postulamos pela ampliação do conceito para fins único de transação penal, mas sim para aplicação de medidas alternativas sem finalidade punitiva, tais como as conciliações civis, já que não é a lei penal que transforma a realidade social (Franco, 2002).

Marcelo Gonçalves Saliba Promotor de Justiça Mestrando pela Faculdade de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná e de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos Luiz Flávio Gomes, igualmente, demonstra sua preocupação com o instrumento "ao se permitir uma facilitação de pronta reabilitação ao infrator (o que sinceramente não consigo vislumbrar com a mesma clareza e autenticidade); economizam-se recursos humanos e materiais. Em contraposição, e com procedência inequivocamente maior aos meus olhos, há um exército de desvantagens do porte do sacrifício do princípio da presunção de inocência (que adquire um caráter farisaico no sistema norte-americano atual), da verdade real, do contraditório, do devido processo legal; há, ademais, o risco das injustiças, da flagrante desigualdade das partes, da falta de publicidade e de lealdade processual, dentre tantos outros" (Gomes, 1992, p. 88-109).

A transação penal, até então inexistente em nosso direito, permitiu a mitigação da obrigatoriedade da ação penal, estabelecendo um novo modelo de Justiça Criminal, centrado na busca da solução dos conflitos e não mais na decisão (formalista) do caso (Gomes, 2003, p. 62). Cuida-se de um revolucionário instrumento de política criminal a possibilitar a solução rápida, sumaríssima, da lide penal (Smanio, 1998, p. 79).

A busca da solução dos conflitos e aplicação de penas diversas da privativa de liberdade, frente à falência do sistema penitenciário brasileiro, parecenos um norte a seguir, obrigatoriamente, até mesmo para se respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana. A transação penal, aqui, é de suma importância e sua ampliação para diversas outras infrações nos parece irremediável, sem, é claro, nos esquecermos das preocupações anteriormente mencionadas.

O artigo 76 da Lei 9.099/95 define transação penal como a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas:

Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.

Damásio de Jesus diz tratar-se de um negócio entre o Ministério Público e a defesa, possibilitandose ao juiz, de imediato, aplicar uma pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e defesa (Jesus, 1995, p. 62).

É medida alternativa que visa impedir a imposição de pena privativa de liberdade, mas não deixa de constituir sanção penal. Como o próprio dispositivo estabelece, claramente, a pena será aplicada de imediato, ou seja, antecipa-se a punição. E pena no sentido de imposição estatal, consistente em perda ou restrição de bens jurídicos do autor do fato, em retribuição à sua conduta e para prevenir novos ilícitos (Dotti, 2004, p. 433).

Para a transação penal, há requisitos a serem observados, preenchidos. Requisito prévio é a existência das condições da ação, não se admitindo a apresentação de proposta se o caso determina o arquivamento do procedimento investigatório. Mais: a partir da criação do estudado instrumento, entendemos não se admitir sua apresentação quando houver dúvidas quanto à autoria, materialidade, existência do fato típico e ilícito. Ao contrário da análise que se faz no momento do oferecimento da denúncia, informada pelo princípio in dubio pro societate, a transação penal deve ser informada pelo princípio in dubio pro reo, ou seja, na dúvida não se pode admitir a aplicação imediata de sanção penal, sob pena de se afrontar os princípios constitucionais anteriormente indicados. Aqui, sim, justifica-se o temor da flagrante desigualdade das partes (Gomes, 1992, p. 88-109). Os demais requisitos estão estabelecidos no artigo 76, parágrafo 2º, da Lei 9.099/95.

A pena a ser proposta pelo Ministério Público e aplicada ao autor do fato deve seguir os parâmetros do artigo 68 do Código Penal, não se podendo admitir que fique ao livre arbítrio, sem qualquer fundamentação, a sanção3. Cabe registrar que o Ministério Público é o titular da proposta e há discricionariedade regrada em sua atuação, tanto que ela será apreciada pelo juiz.

2. Descumprimento injustificado: conseqüências

A alteração legislativa promovida pela Lei dos Juizados Especiais foi sem dúvida profunda, contudo lacunas marcaram a citada lei, tanto que Cezar Roberto Bitencourt diz ser completamente deficiente o instituto (Bitencourt, 2003, p. 578).

Aceita a transação penal pelo autor do fato e seu advogado, será submetida à apreciação do juiz, que não pode se resumir a mero telespectador. Não há vinculação do juiz à proposta formulada...

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