Deus confia em nosso bom senso: experiência como crítica à autoridade no Conto da mulher de Bath

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Deus confia em nosso bom senso...:
experiência como crítica à autoridade
no Conto da mulher de Bath
INTRODUÇÃO
Ainda que neste mundo não existissem os ensinamentos da
autoridade, a mim bastaria a experiência para falar dos males do
matrimônio.1 A afirmação que dá início ao Conto da mulher de Bath
sugere, não obstante seu tom ligeiro, implicações de grande conse-
quência. A partir dessa afirmação inicial busca-se sustentar que, por
meio da tagarelice cômica de seu personagem, Chaucer realiza um
deslocamento sutil no equilíbrio entre autoridade tradicional e expe-
riência quotidiana que irá, em última instância, funcionar para en-
fraquecer a primeira e fortalecer a segunda como principal fonte de
legitimação para as ações humanas.
Como é habitual em textos medievais, a estratégia de Chaucer
para fazê-lo será muito cuidadosa. Umberto Eco já apontou que os
autores da Idade Média fingiam estar meramente repetindo verdades
1 CHAUCER, Geoffrey. Os contos da Cantuária. Tradução de Paulo Vizioli. T.
A. Queiroz, 1991. p. 104.
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PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI
estabelecidas quando estavam, de fato, inovando.2 Isso é exatamente
o que Chaucer faz. No âmbito estrutural, o autor desenvolve sua nar-
rativa colocando o discurso da Comadre em uma moldura discursiva
que age para moderar seus argumentos audaciosos, por vezes po-
tencialmente subversivos. Ele realiza a discussão de graves questões
teológicas e políticas como um exercício de humor e ironia, sendo
capaz, assim, de avançar ideias ousadas sem, contudo, subscrevê-las
abertamente.
No âmbito narrativo, o personagem da Comadre respeito-
samente reconhece, desde o princípio, que respeitáveis filósofos e
teólogos já discorreram adequadamente sobre as provações e tri-
bulações ligadas à vida conjugal. Ela não está questionando seus
ensinamentos, nem sua autoridade, tampouco sugere que eles não
deveriam ser levados a sério. Os comentários e apartes com que ela
ilustra esse discurso oficial, entretanto, solapam fortemente a auto-
ridade dos próprios textos que ela está citando, na medida em que
ela convida seus ouvintes a reconhecer que a “experiência, contudo,
prova que não é bem assim!”.3
Este capítulo irá desenvolver esse argumento em três seções,
além desta introdução e da conclusão. A primeira (Por que rasguei
aquela folha do livro) discute a infirmação da autoridade tradicional
realizada pela estratégia discursiva do narrador; a segunda (Nem to-
das as vasilhas são de ouro) sustenta que a obra de Chaucer participa
de ampla mudança social, que Charles Taylor chamou de afirmação
da vida quotidiana;4 a terceira (O que é que as mulheres mais dese-
jam) sugere que a história da Comadre de Bath sintetiza a mensa-
gem política no coração dos Contos da Cantuária: a experiência e a
2 “[...] a cultura medieval tem o sentido da inovação, mas procura escondê-
-la sob as vestes da repetição (ao contrário da cultura moderna que finge
inovar mesmo quando repete).” Cf. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética
medieval. São Paulo: Globo, [s. d.]. p. 12.
3 CHAUCER, Geoffrey. Os contos da Cantuária, cit., p. 106.
4 TAYLOR, Charles. Sources of the self: the making of the modern identity.
Cambridge: Harvard University Press, 1989.
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