Prisões, bordéis e as pedras da lei: discursos Modernos sobre o Direito em John Austin e William Blake

Páginas49-64
49
Prisões, bordéis e as pedras da lei...:
discursos Modernos sobre o Direito
em John Austin e William Blake1
A existência da lei é uma coisa; seu mérito ou demérito é outra.
Uma lei, que exista de fato, é uma lei, ainda que
não gostemos dela […].2
(John Austin, e province of jurisprudence
determined, 1832)
As prisões são construídas com as pedras da Lei,
os bordéis com os tijolos da religião.
(William Blake, e marriage of
Heaven and Hell, 1790)3
123As obras de John Austin e William Blake são amiúde apon-
tadas como pontos de origem, respectivamente, do positivismo no
Direito e do Romantismo na poesia. Este capítulo sugere que sua im-
portância se estende para além de seu impacto nessas áreas específi-
cas. Sustenta-se aqui que as obras dos autores representam também
respostas antagônicas ao projeto da Modernidade – e aos discursos
1 Publicado originalmente em Cadernos FGV Direito Rio, v. 12, p. 161-172, 2015.
2 The existence of law is one thing; its merit or demerit is another. Whether
it be or be not is one enquiry; whether it be or be not conformable to an
assumed standard, is a different enquiry. A law, which actually exists, is a
law, though we happen to dislike it, or though it vary from the text, by whi-
ch we regulate our approbation and disapprobation. Austin 1832: Lecture
V, p. 157. Austin, John, 1832, The Province of Jurisprudence Determined, W.
Rumble (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1995 (todas as tra-
duções são do autor deste livro).
3 ERDMAN, David V. (ed.). The complete poetry & prose of William Blake.
Anchor Books, 1982. (Esta obra será a fonte para todas as citações de Blake,
ao longo do texto.)
Prisoes_Bordeis_e_as_Pedras_da_Lei_miolo_T.indd 49 27/11/2020 17:20:11
50
PRISÕES, BORDÉIS E AS PEDRAS DA LEI
sobre o Direito que dele decorrem –, ideias essas que se tornaram
matriciais para a forma de o Ocidente pensar o jurídico e sua função
na sociedade.
TRAÇANDO FRONTEIRAS: DEFININDO
A PROVÍNCIA DA JURISPRUDÊNCIA
O projeto Moderno4 se caracteriza, em larga medida, pela
emergência simultânea de um tipo específico de crença e de um tipo
específico de descrença. No polo positivo, acredita-se, com fervor
cada vez maior, na capacidade de os seres humanos observarem e
descreverem relações causais entre eventos. Essa causalidade decorre
da natureza das coisas e independe da vontade ou das características
do sujeito que as observa. A ciência Moderna é uma ciência que se
quer objetiva e neutra. Na visão de seus adeptos, ela está livre dos
preconceitos e superstições que, promovidos e sancionados pelas au-
toridades religiosas e políticas, haviam distorcido, durante séculos, o
olhar dos seres humanos sobre o mundo que os cerca.
A marcha inexorável do tempo, somada à ousadia de alguns
pioneiros (Galileu surge como paradigma do cientista herói/már-
tir lutando contra o obscurantismo da superstição), foi aos poucos
dissipando as trevas da religião para instaurar o reinado de luz da
Razão. Essa é, pelo menos, a narrativa celebratória desse processo,
que Charles Taylor denomina narrativas de subtração.5
A versão mais conhecida e influente dessa narrativa de avanço
contínuo talvez seja a do positivismo comtiano, com seu postulado
de uma progressão que leva as sociedades do estágio teológico ao
4 Ao longo deste texto, os adjetivos Moderno e Romântico aparecerão com
a inicial em maiúscula para indicar que estão sendo utilizados não em sua
acepção corriqueira (i.e., moderno = atual, contemporâneo; romântico =
sentimental, apaixonado), mas como marcadores, respectivamente, de perí-
odos históricos específicos: o Moderno (sobretudo em seu desdobramento
Iluminista, a partir do final do século XVII) e o Romântico (sobretudo a
partir das primeiras décadas do século XIX).
5 TAYLOR, Charles. A Secular Age. Harvard University Press, 2007. p. 22.
Prisoes_Bordeis_e_as_Pedras_da_Lei_miolo_T.indd 50 27/11/2020 17:20:11

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT