O dever fundamental de pagar imposto de renda no Reino Unido

AutorAdriano da Nobrega Silva
Páginas181-194

Adriano da Nobrega Silva. Professor do UniCEUB; consultor legislativo da Câmara dos Deputados; pesquisador do Grupo Integrado de Pesquisa em Finanças Públicas Contemporâneas. adrianodanobrega@gmail.com

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1 Introdução

A história é farta de exemplos a demonstrar que a questão tributária está diretamente relacionada aos direitos fundamentais. Uma das manifestações desse fato é a de que, desde a Magna Carta, se pretendeu limitar a instituição de impostos que não tivessem sido aprovados pelo Parlamento (British Library, 2004), afirmando José Casalta Nabais que o pagamento de impostos constitui uma categoria jurídica autônoma, um dever fundamental (1999, p. 35-40)2.

Em relação a esse dever fundamental, a cobrança de imposto sobre a renda possui papel de destaque. Isso porque, se, nas sociedades menos evoluídas, a instituição de mero imposto per capita é aconselhável, por ser de fácil arrecadação e administração, não atende à capacidade contributiva dos cidadãos (Clarence, 1968, p. 1). Do mesmo modo, alternativas fiscais, tais como, os impostos aduaneiros (customs duties) e os impostos sobre determinados produtos (excise taxes), apesar de serem mais facilmente administráveis, precisam atender a funções extrafiscais que reduzem ou inviabilizam momentaneamente o caráter arrecadatório (Clarence, 1968, p. 1).

Em virtude dessas razões, o presente estudo procura analisar as relações entre o imposto sobre a renda e os direitos fundamentais no Reino Unido. Será inicialmente realizada contextualização do sistema constitucional do país, apresentando-se suas linhas mestras fundamentais, enfatizando-se a importância das decisões judiciais, passando-se, em seguida, à abordagem das questões tributárias propriamente ditas.

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2 Sistema constitucional tributário no Reino Unido
2. 1 Normas constitucionais
2.1. 1 O papel do Poder Judiciário

O sistema jurídico do Reino Unido possui peculiaridades que o distinguem dos demais existentes na Europa e que não podem ser adequadamente compreendidas sem o exame de sua evolução histórica.

Em primeiro lugar, deve ser apontado que o feudalismo britânico se deu de modo sui generis: os normandos conquistam a Inglaterra, a qual é dividida em feudos. Os senhores feudais, de origem normanda, estranhos em terra estranha, precisam organizar-se em torno do Rei, sob pena de verem-se subjugados. Por essa razão, os feudos são rigorosamente organizados pelo soberano, em um verdadeiro sistema militar (David, 1998, p. 285).

A principal fonte de onde provém o direito, na época, é o costume. Como em todos os sistemas feudais, existe, nesse período, por evidente, a multiplicidade de costumes locais, válidos apenas nas circunscrições de cada feudo, convivendo com outros costumes conhecidos e cumpridos em todo o Reino. Enquanto os primeiros caracterizam costumes particulares, os últimos compõem a Common Law propriamente dita (Blackstone, 1769, p. 63)3.

Entretanto, essa prevalência do costume não é suficiente para distinguir o sistema jurídico do Reino Unido dos demais existentes no continente europeu, visto que também vivenciavam, nesse momento histórico, essa experiência. Dois outros fatores contribuíram para a peculiaridade do sistema britânico: a Inglaterra não conhecia, até então, um corpo de regras preestabelecido em um diploma legal, a exemplo do Corpus Juris Civilis (David, 1998, p. 340) e, ao contrário do que se verificava no continente, não era necessário que os juízes ou advogados possuíssem formação universitária4 (David, 1997, p. 3).

Blackstone salienta a peculiaridade dos costumes em relação às leis:

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sua instituição original e sua autoridade não se encontram em textos escritos, tais como os atos do Parlamento, mas recebem sua compulsoriedade, sua força jurídica, pelo uso prolongado e imemorial e por sua aceitação universal por todo o Reino (...) esses costumes são antigos como os primeiros bretões e permanecem imodificados e inalterados, mesmo após as muitas mudanças no governo e na população, até os dias atuais. (1769, p. 64)5

Sendo o costume imemorial, convém, como o faz Blackstone, indagar: como um costume pode ser reconhecido e como ele pode ter sua validade determinada? O próprio autor responde: pela atuação dos juízes, nas diversas Cortes existentes no Reino (1769, p. 69)6. Isso determina a mudança no modo como a idéia de Direito é considerada no continente europeu, a exemplo da França e do Reino Unido. Enquanto, na primeira, é visto como modo de organização social, com regras de conduta gerais, no segundo, é muito mais o modo pelo qual os conflitos devem ser solucionados no âmbito de um processo judicial (David, 1997, p. 2-3).

Tendo em conta a importância dos juízes na construção do sistema jurídico britânico, convém fazer referência, ainda que superficialmente, à evolução histórica da estrutura do Poder Judiciário do Reino Unido. Inicialmente, as questões jurídicas eram solucionadas por cortes locais (Hundred Courts ou County Courts), com recurso aos costumes existentes na região ou no feudo em que se localizavam, cabendo ao Rei, apenas em escassos casos, o exercício da Justiça (David, 1998, p. 286).

No século XIII, são instituídos os Tribunais Reais em Westminster, originalmente com competências excepcionais – julgamento de causas relativas às finanças reais (Tribunal de Apelação – Exchequer), de questões relativas à propriedade imobiliária e à posse de imóveis (Tribunal de Pleitos Comuns – Common Pleas) e de graves questões criminais relativas à paz do Reino (Tribunal do Banco do Rei – King’s Bench) (David, 1998, p. 287).

Com a instituição das Cortes Reais, passa a haver duas jurisdições distintas: a da Coroa e a dos senhores feudais. Enquanto aquela cuidava das regras e dos costumes comuns em todo o Reino (razão pela qual passou a ser denominada Common Law7), os senhores feudais aplicavam apenas as regras e os costumes locais de seu feudo (David, 1997, p. 4).

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Por serem as Cortes Reais mais eficientes no julgamento dos litígios, os particulares passaram a dirigir suas questões ao seu julgamento. No mesmo sentido, tais Cortes, desejando ampliar sua competência mediante ficções jurídicas, conheceram muitos dos litígios verificados no Reino Unido sob o argumento de que interessavam à Coroa (David, 1997, p. 4). Além disso, era interessante para o Rei a ampliação da competência das Cortes Reais, porque a administração da justiça real proporcionava grandes lucros à Coroa (David, 1998, p. 288).

Além dos julgamentos de causas de interesse da Coroa, releva observar que outra importante função dos tribunais foi a de fazer valer os princípios estabelecidos nos contratos de domínio firmados contra os abusos e os arbítrios do soberano porque a concentração do Poder nas mãos do soberano, no Reino Unido, deu-se antes do que se verificou no Continente (Miranda, 1997, p. 123). Em função dos abusos advindos da concentração de poder, o mecanismo encontrado no Reino Unido, desde o século XIII, para solucionar os conflitos entre o soberano e os súditos, não foi a edição de leis fundamentais, as quais rompiam com toda a estrutura jurídica anteriormente existente, mas sim a elaboração de contratos de domínio8, os quais confirmavam os direitos e as liberdades já presentes nos costumes existentes e buscavam limitar o poder do soberano (Canotilho, 1997, p. 69).

A aplicação dos compromissos estabelecidos nos contratos de domínio pelos juízes constituiu o que, no Reino Unido, ficou conhecido como rule of law, o qual pode ser compreendido como:

os princípios, as instituições e os processos que a tradição e a experiência dos juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais para a salvaguarda da dignidade das pessoas frente ao Estado, à luz da idéia de que o Direito deve dar aos indivíduos a necessária proteção contra qualquer exercício arbitrário de poder. (Miranda, 1997, p. 130).

Além disso, tendo em conta o importante papel desempenhado pelos julgados emPage 185 um sistema jurídico no qual inexistiam corpos legislativos sistemáticos e codificados9, desenvolve-se na Inglaterra o dever de levar em conta as decisões judiciais anteriores, o qual, segundo René David (1998, p. 341-342), é condensado nas três proposições seguintes:

  1. – As decisões tomadas pela Câmara dos Lordes constituem precedentes obrigatórios, cuja doutrina deve ser seguida por todas as jurisdições, salvo excepcionalmente por ela própria; 2º – As decisões tomadas pelo Court of Appeal constituem precedentes obrigatórios para todas as jurisdições inferiores hierarquicamente a este tribunal e, salvo em matéria criminal, para o próprio Court of Appeal; 3º – As decisões tomadas pelo High Court of Justice impõem-se às jurisdições inferiores e, sem serem rigorosamente obrigatórias, têm um grande valor de persuasão e são geralmente seguidas pelas diferentes divisões do próprio High Court of Justice e pelo Crown Court.

O fato de o Direito estar diluído nas decisões dos juízes explica por que, no ordenamento jurídico britânico, é infensa a idéia de um “poder” constituinte capaz de, per se, estabelecer e ordenar um novo modelo político para o povo (Canotilho, 1997, p. 69).

Por fim, convém observar que, por ser um sistema excessivamente formalista, no qual um direito poderia não ser conhecido...

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