A natureza jurídica dos tratados de direitos humanos: a incompatibilidade sistêmica da supralegalidade e a necessidade de revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal

AutorHenrique Smidt Simon
CargoDoutor em direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília
Páginas99-120
A natureza jurídica dos tratados de direitos
humanos: a incompatibilidade sistêmica
da supralegalidade e a necessidade
de revisão do entendimento do
supremo tribunal federal
Henrique Smidt Simon*
1. Introdução
No Brasil, o direito internacional parece ainda sofrer com a indef‌inição
do seu status na pirâmide jurídica do ordenamento. Aqui ainda se discute
monismo e dualismo e a relação das normas de direito internacional com
o direito interno1. A soberania é tratada como surgiu conceitualmente em
meados para o f‌inal do século XIX, em que, vinculada ao Estado-nação2,
era o poder que não reconhecia nenhum outro superior internamente e ti-
nha os demais como iguais internacionalmente. Daí a vinculação ao direito
internacional ser uma questão de anuência, num modelo próximo ao do
contrato. E como pano de fundo estão a ideia de nação e o seu corolário ju-
rídico: a soberania popular3. Portanto, f‌icamos presos a conceitos também
clássicos do direito constitucional, quais sejam, a veneração ao poder cons-
* Doutor em direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, professor do Centro Universitário
de Brasília (UniCEUB) e do programa de mestrado em Ciência Política da UniEURO, advogado.
1 Sobre a apresentação das diferenças entre monismo e dualismo, veja-se REZEK, 2011, p. 28-29;
ACCIOLY e SILVA, 2000, p. 61-63; DUPUY, 2000, p. 385-389; BROWNLIE, 1997, p. 43-67; MELLO,
2001, p. 109-135; TRINDADE, 1996, p. 205-237; DINH, DALLIER e PELLET, 1999, p.184-190. Para um
resumo das principais teorias a respeito das duas correntes, veja-se GALINDO, 2002, p. 9-72. A relação das
teorias com para a compatibilidade entre o ordenamento do MERCOSUL e do Brasil dentro do contexto do
conf‌lito de fontes pode ser vista em BARBOSA-FOHRMANN (2010).
2 Sobre a formação histórica do Estado-nação, veja-se ELIAS, 1993; MORGAN, 2006; BOBBITT, 2003;
HOBSBAWN, 1990; GELLNER, 2001.
3 Para uma apresentação da discussão política sobre o conceito de soberania, conf‌ira-se SIMON, 2010.
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tituinte originário e a consequente supremacia da constituição. O próprio
direito internacional contribui para esses usos conceituais que se tornaram
tradicionais, com os princípios da não-intervenção e da autodeterminação
dos povos (que são os correlatos da soberania jurídica estatal e da sobera-
nia popular da nação).
O problema é que o recurso a esses elementos tradicionais não só é
incapaz de resolver as questões básicas do dia-a-dia do direito, mas acaba
por causar ainda mais dif‌iculdades, formando verdadeiro círculo vicioso.
Esse parece ser o caso da natureza jurídica dos tratados internacionais no
âmbito do direito brasileiro. Tal tipo de norma internacional apresenta vá-
rios desaf‌ios para a sua acomodação em face das demais normas vigentes
e da constituição quando é internalizada no ordenamento pátrio, pois é
preciso saber qual a sua relação com as demais normas vigentes e com a
Constituição4.
Dessa dif‌iculdade surge o debate sobre a natureza jurídica dos tratados
de direitos humanos no nosso ordenamento jurídico5, em que o próprio
texto constitucional não consegue esclarecer a posição de tais tipos de tra-
tados no sistema, levando o Supremo Tribunal Federal (STF) a causar di-
versas dúvidas acerca da matéria, o que é o objeto de análise do presente
artigo. A questão, levantada desde o Recurso Extraordinário 80004, jul-
gado em 1º de junho de 1977, foi amplamente debatida pela nossa Corte
Constitucional após a Constituição de 1988, em razão do § 2º do art. 5º
da Carta da República.
Em primeiro posicionamento, o STF f‌ixou entendimento no sentido
de negar mesmo aos tratados de direitos humanos hierarquia superior às
leis ordinárias. O marco de tal entendimento foi a decisão tomada no Ha-
beas Corpus (HC) 72.131-1, julgado em 23 de novembro de 1995. O STF
preocupou-se com a manutenção dos conceitos de soberania supremacia
da constituição e com o problema técnico da possibilidade de se denunciar
o tratado. Com a pressão da doutrina e da comunidade jurídica como um
todo, preocupados com a dignidade e com a efetividade na aplicação e
reconhecimento de direitos humanos, o Supremo, em nova composição,
4 A discussão sobre a hierarquia dos tratados pode ser vista em: DUPUY, 2000, p. 381-412; FIX-
ZAMUDIO, 1996, p. 51-67; PIOVESAN, 2006, p. 51-80; GALINDO, 2002, p. 249-337; RAGAZZI, 2000,
p. 43-74; DINH, DALLIER e PELLET, 1999, p. 184-190 e 251-265.
5 Sobre a hierarquia dos tratados conf‌ira-se: DUPUY, 2000, p. 213-217; BROWNLIE, 1997, p. 533-539
e MELLO, 2001, p. 765-863.
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