A diferença risco/perigo

AutorJosé Luis Serrano
CargoProfessor do Departamento de Filosofia do Direito da Universidade de Granada - Espanha
Páginas233-250

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1 A categoria diferencial risco/perigo

Escreveremos as palavras risco e perigo unidas/separadas por uma barra (/) para mostrar que constituem uma diferença.1

Diferença: uma categoria é diferencial quando não pode ser definida sem recorrer a seu oposto. Por exemplo: a cara de uma moeda com relação à coroa. (Diferença e distinção são termos sinônimos, embora o segundo pareça ser mais psíquico e o primeiro, mais objetivo. Assim, a respeito de uma moeda igual dos dois lados, diríamos que não diferencia cara de coroa; porém, a respeito de uma pessoa que não pudesse perceber a diferença entre cara e coroa, diríamos que não distingue cara de coroa).

A diferença risco/perigo indica que, para ser definido o conceito de risco, precisamos do conceito de perigo e o oposto. Por exemplo, uma inundação é um perigo, porém, aquele que constrói sua casa no leito de um rio expõe-se a um risco. Um furacão é um perigo, mas quem provoca o aquecimento global se (e nos) expõe Page 234 a um risco. A inundação, o terremoto e o furacão são o mesmo fenômeno, mas podem ser contemplados a partir de dois pontos de vista.

Conceito: O que é observado mediante uma diferença. Os conceitos são sempre construções de um observador. Não preexistem à observação. Nisto se parecem com os objetos. Entretanto, diferentemente destes, os conceitos afastam o observador daquilo que é observado.

Ao utilizar a diferença risco/perigo, partimos do pressuposto de que todo observador precisa de uma diferença ou distinção, porque de outra forma não poderia caracterizar o que pretende observar. Entretanto, um observador não pode observar o outro lado da diferença quando está usando a diferença, porque a transição de um lado para outro necessita de tempo. É por isso que quem observa com o olhar do risco não pode - ao mesmo tempo - observar com o olhar do perigo. Tampouco é possível observar a unidade da diferença (por exemplo, a moeda) quando um observador está usando a diferença, porque para isso precisaria utilizar outra categoria que diferenciasse a unidade (moeda) de outra unidade, necessitando também de tempo.

Unidade: aquilo que já não pode ser decomposto. O termo etimológico para designar a unidade é o átomo (do grego (...PDF...) não-parte). Normalmente a unidade é o elemento e a pluralidade é a relação.

De resto, devemos distinguir entre dois tipos de diferenças. O primeiro tipo de distinção caracteriza algo, distinguindo-o de tudo o mais. Chamaremos objeto o que é assim especificado.

Objeto: aquilo que é observado, caracterizado e distinguido, sem que se possa separar a caracterização da distinção ou diferença. Isto é, aquilo que se caracteriza, distinguindo-o de tudo o mais. Não necessariamente o conceito de objeto implica uma distinção sujeito/objeto.

O outro tipo de prática distintiva ou diferença é o que chamamos conceito. Aqui se delimita o observado de maneira binária, isto é, levando em Page 235 consideração o outro lado: mulher/homem, lícito/ilícito, possível/provável ou risco/perigo.

Pode parecer uma obviedade, mas é importante enfatizar agora: o risco não é um objeto, mas um conceito. Além disso, é um conceito histórico tardio que caracteriza como unidade uma série de diferenças (LUHMANN, 1991). A palavra risco é um neolatinismo (risicum) que não surge até meados do século XVI (Ad omnen risicum, periculum et fortuna dei). Ignoramos a origem da palavra (árabe, talvez). Ocorre que por volta de 1500 os observadores precisam introduzir o conceito de risco para caracterizar situações que supomos que não estavam bem caracterizadas com termos muito antigos como sorte, perigo, acaso ou medo. O surgimento tardio da palavra não significa que não se tivesse antes consciência de risco. Nas transações comerciais do mais antigo comércio marítimo, há normas jurídicas para a cobertura de riscos, há emprestadores de capital que atuam como seguradores e há definitivamente um controle planejado do risco, embora não se chame assim, e as normas jurídicas apareçam mescladas com a ideia do dano como castigo divino ou com a adivinhação como prognóstico de riscos. A palavra, sem dúvida, somente pode ser contemporânea do conceito como diferença entre risco e perigo. Estamos, por isso, diante de um conceito próprio da modernidade. A partir daqui, o risco é um complexo cultural que substitui o arrependimento em confissão. Se pensarmos bem, a catástrofe entendida como castigo de Deus pelo pecado somente pode ser abrandada mediante o arrependimento e o propósito de emenda. Isto é, mediante a não repetição da ação pecaminosa que levou ao dano. Exatamente o contrário é o cálculo de riscos: a redução ao mínimo de arrependimento e a maximização das ações arriscadas. Isto somente é possível em sociedades que não vejam a ordem natural como a ordem desejada por Deus e em sociedades que substituam a divina providência pela cobertura estatal ou monetária do acaso.

2 Risco e estado

Por outra parte, não pode ser casual que o conceito de risco seja contemporâneo ao processo de diferenciação do estado moderno. Tem que existir uma retroalimentação entre os dois conceitos que, provavelmente, reside no fato de que esta cultura do risco sem arrependimento se comporte como legitimadora da Page 236 mesma existência institucional do estado moderno. Há estado - afirma-se - porque se necessita de segurança diante dos acidentes; da enfermidade; do crime; das catástrofes naturais ou da condição dos deficientes, das crianças, dos idosos... Entretanto, para que o risco atue como instância legitimadora, o estado precisa apresentá-lo em duas dimensões complementares: (a) como acidente, isto é, como disfunção passageira no bom funcionamento do mecanismo institucional dominante, e (b) atomizado, um a um e nunca como um perigo global.

Toda a ideologia do estado moderno foi construída sobre a base do medo do caos e, no chamado "estado de bem-estar", este medo substanciou-se no conceito de risco. Conceito nebuloso, mas sempre carregado de advertências institucionais contra o "curto-circuito", contra o "acidente", contra a interrupção da situação que se autoconsidera ótima. Por isso, de alguma forma, a gestão de riscos é também a gestão do medo. Também por isso se explica a exigência de responsabilidades políticas e judiciais em relação aos responsáveis administrativos e políticos quando ocorrem catástrofes e acidentes. A importância do medo deriva do fato certo de que é um fator comum aos observadores ou agentes que optam tanto pela percepção do risco como necessário, como pela percepção do perigo como desnecessário. Um dos problemas e uma das principais limitações do sistema político como sistema de gestão de riscos residem no fato de que não se pode reduzir esse medo. O poder do estado provém precisamente da ameaça da violência física e, portanto, é exigência estrutural do sistema a produção do medo. A coação somente funciona se o receptor tem medo e aquele que ameaça, em caso algum, pode contribuir para que o ameaçado perca o medo. A partir deste ponto de vista, todo sistema político é uma instância produtora de medo. Pode-se discutir se a violência é redutível mediante a violência, mas é absolutamente claro que o medo não pode ser combatido com medo. A chamada espiral da violência talvez possa ser discutível; a espiral do medo (o pânico) não pode. O sistema político não pode combater o medo da catástrofe; está estruturalmente limitado neste ponto. Portanto, a única forma de atuação que lhe resta é a de combater o objeto do medo. Isto introduz um desvio negativo a toda gestão pública de riscos, convertendo-a numa política de proibições e restrições, de sanções e limitações. Page 237

3 Risco e causalidade

O modo habitual de colocar os problemas relacionados com o risco consiste em procurar as causas na sociedade, para depois imputar responsabilidade ao agente social causador. Buscam-se as raízes do mal e, à luz de sua análise, tenta-se aperfeiçoar depois as políticas públicas, os instrumentos de polícia ou de responsabilidade por danos. No entanto, eliminar as causas é apenas uma entre as muitas reações possíveis aos efeitos do dano. Portanto, o sentido profundo do princípio de causalidade em política e direito não é tanto a determinação das causas do dano, porém bem mais a imputação de responsabilidades. Os fenômenos da pluricausalidade (muitas causas para um único efeito) e da...

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