Dignidade da pessoa humana e relações de trabalho à luz da jurisprudência do supremo tribunal federal

AutorIngo Wolfgang Sarlet
Páginas346-361
CAPÍTULO 25
(1) Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de
Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Desembargador aposentado do TJRS. Advogado.
(2) O presente texto corresponde, com importantes ajustes e atualizações, inclusive estruturais, à trabalho já publicado em outros meios.
Dignidade da Pessoa Humana e Relações de Trabalho à Luz
da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
INGO WOLFGANG SARLET
(1)
Resumo: O presente texto versa sobre o conceito, dimensões, interpretação e aplicação do princípio da dignidade da pessoa
humana no âmbito do direito do trabalho e, em especial, aos direitos fundamentais dos trabalhadores tais como consagrados na
Constituição Federal Brasileira de 1988, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Constituição Federal brasileira. Direitos Fundamentais dos Trabalhadores. Supre-
mo Tribunal Federal.
Abstract: This paper deals with the concept, dimensions, interpretation and application of the principle of human dignity in the
field of labor law and, in particular, to the fundamental rights of workers as enshrined in the Brazilian Federal Constitution of 1988,
in light of the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court.
Keywords: Dignity of the human person. Brazilian Federal Constitution. Fundamental Rights of workers. Brazilian Supreme Court.
1. INTRODUÇÃO(2)
A dignidade da pessoa humana, consagrada na
condição de princípio fundamental estruturante e in-
formador de toda a ordem jurídico-constitucional no
art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988 (doravan-
te CF), tem assumido uma posição de cada vez maior
destaque na esfera de sua invocação e aplicação pelos
órgãos do Poder Judiciário, o que, aliás, se verifica em
todos os níveis da Jurisdição, seja na esfera da Justiça
Estadual, seja no domínio da Justiça Federal comum e
especializada, especialmente, para efeitos do presente
estudo, da Justiça do Trabalho. Mas, de qualquer sor-
te, é na prática decisória do Supremo Tribunal Federal
(STF) que o sentido e alcance atribuído à dignidade da
pessoa humana assume feição particularmente rele-
vante, considerando-se o caráter vinculativo e diretivo
da jurisprudência daquele que vem a ocupar, no caso
brasileiro (e à moda brasileira), a condição de guardião
da Constituição.
Todavia, para viabilizar a análise seletiva da juris-
prudência da nossa Corte Constitucional, importa,
num primeiro passo, tematizar o conceito, as dimen-
sões e funções da dignidade no Estado Constitucional,
seguindo-se o exame da jurisprudência do STF, com
ênfase na relação entre dignidade da pessoa humana e
dos direitos fundamentais, ilustrado por alguns exem-
plos, tudo com o propósito de compreender como se
aplica o princípio (e regra) da dignidade da pessoa hu-
mana no Brasil, não só, mas em especial, no domínio do
Direito e das relações de trabalho, onde, de há muito,
se fala num direito humano e fundamental ao trabalho
digno e onde a vulnerabilidade e hipossuficiência, em
regra, caracterizam os que alienam a sua força de traba-
lho, subordinando-se, em maior ou menor medida, ao
poder econômico e social.
Antes de prosseguir, contudo, importa agradecer
ao honroso convite que nos foi formulado pela ilustre
Profa. Dra. Gabriela Neves Delgado, acadêmica e advo-
gada de largo prestígio e autora de obras referenciais
Dignidade da Pessoa Humana e Relações de Trabalho à Luz da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Capítulo 25
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sobre a temática aqui versada(3), no sentido de poder
integrar esta coletânea que festeja os dez anos de exis-
tência do Grupo de Pesquisas Trabalho, Constituição e
Cidadania, por ela criado e coordenado.
2. CONCEITO, DIMENSÕES E FUNÇÕES DA
DIGNIDADE DA PESSOA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO
A despeito das inúmeras tentativas formuladas
ao longo dos tempos, notadamente (mas não exclu-
sivamente) no âmbito da fecunda tradição filosófica
ocidental,(4) verifica-se que uma conceituação mais pre-
cisa do que efetivamente seja esta dignidade, inclusive
para efeitos de definição do seu âmbito de proteção na
esfera do Direito, continua a ser um desafio para todos
os que se ocupam do tema. Tal dificuldade, consoante
exaustiva e corretamente destacada na doutrina, de-
corre certamente (ao menos também) da circunstân-
cia de que se cuida de conceito de contornos vagos e
imprecisos,(5) caracterizado por uma “ambiguidade e
porosidade”, assim como por sua natureza necessaria-
mente polissêmica(6).
Uma das principais dificuldades, todavia, reside no
fato de que no caso da dignidade da pessoa humana,
diversamente do que ocorre com as normas que defi-
(3) V., entre outros títulos referenciais sobre o tema, DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. 2.ed. São Paulo: RTL,
2016.; DELGADO, Gabriela Neves; DELGADO, Mauricio Godinho, Constituição da República e Direitos Fundamentais. Dignidade da Pessoa Hu-
mana, Justiça Social e Direito do Trabalho. 4.ed. São Paulo: LTr, 2017.
(4) A respeito deste ponto, no que diz com a literatura brasileira, v.especialmente o nosso SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa e Direitos
Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. Dentre os autores estrangeiros, v., na literatura
alemã e considerando apenas a produção monográfica, mais recentemente, TIEDEMANN, Paul. Menschenwürde als Rechtsbegriff. Eine philoso-
phische Klärung, Berliner Wissenschafts-Verlag, 2007, especialmente, no que diz com a noção de dignidade no pensamento filosófico. p.109-
174. Na literatura em língua espanhola, v.entre outros, PELE, Antonio. La dignidad humana. Sus Orígenes en el Pensamiento Clásico, Madrid:
Dikynson, 2010 (embora priorizando a concepção de dignidade dos autores do período clássico, especialmente Aristóteles, Cícero e Sêneca).
(5) Neste sentido, dentre tantos, MAUNZ, Theodor; ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29.ed. München: C.H. Beck, 1994. p.179.
(6) Assim o sustenta, no Brasil, ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista Interesse
Público, n.4, 1999. p.24.
(7) Cf., por exemplo, adverte SACHS, Michael. Verfassungsrecht II– Grundrechte, Berlin-Heidelberg-New York: Springer, 2000. p.173.
(8) Quando aqui se fala em uma noção jurídica de dignidade, pretende-se apenas clarificar que se está simplesmente buscando retratar como a
doutrina e a jurisprudência constitucional– e ainda assim de modo apenas exemplificativo– estão compreendendo, aplicando e eventual-
mente concretizando e desenvolvendo uma (ou várias) concepções a respeito do conteúdo e significado da dignidade da pessoa. Por outro
lado, não se questiona mais seriamente que a dignidade seja também um conceito jurídico. Neste sentido, por todos e mais recentemente,
KUNIG, Philip. Art. 1 GG (Würde des Menschen, Grundrechtsbindung). In: MÜNCH, Ingo von (Org.). Grundgesetz Kommentar, v.I, 5.ed. München:
C.H. Beck, 2000. p.76.
(9) Neste sentido, a sugestiva lição de HÄBERLE, Peter. Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft. In: ISENSEE, Joseph;
KIRCHHOF, Paul (Org.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, v.I, Heidelberg: C.F. Muller, 1987. p.853 para quem se revela
indispensável a utilização de exemplos concretos para obter uma aproximação com o conceito de dignidade da pessoa humana, salientando,
além disso, a importância de um preenchimento desta noção “de baixo para cima”, no sentido de que a própria ordem jurídica infraconsti-
tucional fornece importante material para a definição dos contornos do conceito. Registre-se, por oportuno, a crítica de LUHMANN, Niklas.
Grundrechte als Institution, 2.ed. BerlIn: Duncker & Humblot, 1974. p.57, salientando que a dogmática jurídica habitualmente define a digni-
dade sem qualquer consideração pelas ciências que se ocupam do Homem e da Sociedade, aferrando-se a uma tradição aristotélica. Ainda
que Luhmann possa ter parcial razão quanto a este aspecto, convém destacar, todavia, que sua obra foi escrita na década de 1960, quando a
ciência jurídica recém estava iniciando o estudo mais sistemático da dignidade na condição de categoria jurídica.
nem e asseguram direitos fundamentais, não se trata
de demarcar aspectos mais ou menos específicos da
existência humana (integridade física, intimidade, vida,
propriedade etc.), mas, sim, de uma qualidade tida por
muitos– por mais reservas que se deva ter em relação
a tal concepção– como inerente (melhor seria atribuída
e/ou reconhecida) a todo e qualquer ser humano. É pre-
cisamente nessa perspectiva que a dignidade passou a
ser habitualmente definida como constituindo o valor
próprio que identifica o ser humano como tal, definição
esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para
uma compreensão satisfatória do que efetivamente é
o âmbito de proteção da dignidade na sua condição
jurídico-normativa.(7)
A despeito das dificuldades, verifica-se, contudo,
que a doutrina e a jurisprudência– especialmente para
o efeito da “construção” de uma noção jurídica de digni-
dade(8)– cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer
alguns contornos basilares do conceito, concretizando
minimamente o seu conteúdo, ainda que não se possa
falar, também aqui, de uma definição genérica e abstra-
ta consensualmente aceita(9). Nesse contexto, costuma
apontar-se corretamente para a circunstância de que a
dignidade da pessoa humana não poderá ser concei-
tuada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica
que uma definição desta natureza não harmoniza com

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