Dignidade da Pessoa Humana, Poder Público e Pobreza

AutorSandra Pires
CargoAdvogada. Especialista em Direito Processual Civil
Páginas24-30

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Introdução

A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem origem bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com o Iluminismo e a centralidade do homem, ela se desloca para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a capacidade de valoração moral e autodeterminação do indivíduo1.

No decorrer do século XX, ela se torna um objetivo a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. É após a segunda guerra mundial que a ideia de dignidade da pessoa humana se introduz no mundo jurídico, em virtude do surgimento de uma cultura pós-positivista e da sua inclusão em diferentes documentos internacionais e constituições de Estados democráticos2. O grande desafio que se apresenta é operacionalizá-la interna e externamente.

A dignidade humana, conforme já mencionado, apareceu nos documentos jurídicos apenas no final da segunda década do século XX, a começar pelas constituições do México (1917) e da Alemanha de Weimar (1919)3. Antes de viver sua apoteose como símbolo humanista, esteve presente em textos

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com pouco pedigree democrático, como o Projeto de Constituição do Marechal Pétain (1940) e como a Lei Constitucional decretada por Francisco Franco (1945), durante a ditadura espanhola4. Após a segunda guerra mundial, ela foi incorporada aos mais importantes documentos internacionais, como a Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e inúmeros outros tratados e pactos internacionais, passando a ser protagonista do discurso sobre direitos humanos. Cumpre destacar que a sua proteção foi inserida em diversas constituições, como por exemplo, na brasileira5, salientando que naquelas desprovidas de previsão expressa, a jurisprudência tem se encarregado de trazê-la à tona.

Barroso6, ao prelecionar acerca do valor intrínseco da pessoa humana no plano jurídico, defende que a inviolabilidade da digni-dade está na origem de uma série de direitos fundamentais, sendo o primeiro deles o direito à vida. Em segundo lugar, o direito à igualdade; em terceiro, o direito à integri-dade física; e, por fim, o direito à integridade moral ou psíquica. Já no plano político, sustenta que a dignidade está subjacente aos direitos sociais materialmente fundamentais, em cujo âmbito mere-ce destaque o conceito de mínimo existencial:

Para ser livre, igual e capaz de exercer sua cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. Vale dizer: tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares. O direito ao mínimo existencial não é, como regra, referido expressamente em documentos constitucionais ou internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente reconhecida. E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública. Não é possível captar esse conteúdo em um elenco exaustivo, até porque ele variará no tempo e no espaço.

Finalmente, o mesmo estudioso defende a dignidade como fator heteronômico, funcionando mais como uma constrição externa à liberdade individual do que como um meio de promovê-la.

Conclui-se não ser tarefa fácil definir dignidade da pessoa humana. Ela é constituída de uma mescla de valores complexos. É certo, no entanto, que a dignidade deixou de ser sinônimo de poderio, de posição social e de grau de reconhecimento pela comunidade, para assumir uma dimensão de igualdade.

Poder público, pobreza e dignidade da pessoa humana

Dá-se início a esta parte do trabalho com uma pergunta: o crescimento do bem-estar pode ser equiparado ao crescimento econômico? Tal pressuposto vem sendo bastante problematizado nas últimas décadas, especialmente quando se reconhece que a fome e a deficiência alimentar permanecem como grandes desafios. Kesselring destaca que7:

Os homens querem de um lado, cooperar e, de outro, concretizar seus interesses individuais. Desigualdade social e desigualdade econômica estão numa relação de efeito recíproco alternado, onde cada uma é tanto causa como também efeito da outra. Uma maior igualdade econômica conduziria a uma maior igualdade social. A muitas sociedades que sofrem sob condições desfavoráveis, não faltam os recursos. Sociedades bem ordenadas podem aqui sair-se bem com muito pouco; sua riqueza está nas tradições políticas e culturais, em seu ‘capital humano’, em seu saber e sua capacidade de organização política e econômica. Um regime corrupto, que recebesse ajuda econômica, não se tornaria com isso menos corrupto. A carência econômica seria antes conseqüência de problemas políticos e estruturais do que sua causa. O temor permanente ante uma insuficiente capacidade competitiva exerce pressão nos salários, conduz à diminuição das pessoas empregadas, à redução da segurança no emprego, à falta de compromisso na observância dos direitos humanos e ao aumento do trabalho infantil. O vertiginoso declive na estrutura salarial faz com que a pobreza se torne uma vantagem econômica da praça. Quem não dispõe de dinheiro é excluído do mercado (apartheid).

As afirmações do filósofo deixam evidente a dubiedade humana: de um lado se rechaça; de outro, se cultiva a pobreza. Ninguém quer ser pobre, mas tal estado potencializa o acesso de alguns às oportunidades dirimentes da pobreza. Entretanto, o que são e quais são os pobres? Os professores Canotilho, Marcus e Érica Correia fazem o mesmo questionamento8:

Pobres são os proletários no clássico sentido marxista da luta de classes? Pobres são os pobres de espírito no sentido bíblico? Pobres são os excluídos da sociedade de conhecimento? Pobres são os que vivem em ‘bairros de lata’? Pobres são os que vivem em países pobres? Pobres são os beneficiários de um rendimento social de inserção? Pobres são os fracos e os oprimidos? Pobres são os que vivem no limite de uma existência minima-mente condigna? (grifo nosso).

Este trabalho não ambiciona apresentar solução ao questionamento, mas traz observações que, apesar de escritas em 1989, são bastante atuais e imbuídas de elevado grau de discutimento:

"pobres são uma parte - mesmo sub-humana - da ordem natural e estabelecida do mundo (quase uma estrutura), sendo merecedores de censuras pela sua própria condição (uma conjuntura). Todos os estudos modernos acerca da pobreza concordam axiomaticamente com o fato de ela ser uma condição mais fácil de descrever do que de definir."9

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Interessa-nos a expressão "existência minimamente condigna". Os professores que questionam a expressão "pobres" compreendem como mínimo existencial o conjunto de prestações materiais que asseguram a cada indivíduo uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável, ou seja, de uma vida que corresponda a padrões qualitativos mínimos que vão além da sobrevivência física e do exercício das liberdades fundamentais, sendo certo que o conteúdo do mínimo existencial está condicionado pelas circunstâncias históricas, geográficas, sociais, econômicas e culturais em cada lugar e momento e destacam a importância do ato de visibilizar os titulares de direitos, que só desta maneira conseguirão titularizar algo. Visíveis entram no universo dos direitos, não somente por meio das leis, mas também, e acima de tudo, para e pelos olhos do intérprete destas10. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a proteção ao mínimo existencial constitui o elo entre a pobreza, a exclusão social e os direitos sociais11.

A visibilidade dos (ex)incluídos pelo intérprete das leis é de suma importância. Não se intenta aqui, fomentar o debate acerca da distinção qualitativa entre princípios e regras. A teoria dominante nos mais variados países, inclusive no Brasil, é no sentido de que12:

princípios são normas jurídicas que não se aplicam na modalidade tudo ou nada, como as regras, possuindo uma dimensão de peso ou importância, a ser determinada diante dos elementos do caso concreto. São eles mandados de otimização, devendo sua realização se dar na maior medida possível, levando-se em conta outros princípios, bem como a realidade fática subjacente. Vale dizer: princípios estão sujeitos à ponderação e à proporcionalidade, e sua pretensão normativa pode ceder, conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos. A identificação da dignidade humana como um princípio jurídico produz conseqüências relevantes no que diz respeito à determinação de seu conteúdo e estrutura normativa, seu modo de aplicação e seu papel no sistema constitucional. Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que consagram valores ou indicam fins a serem realizados (...) (grifo nosso).

A dignidade da pessoa humana, encarada como princípio, cede à razoabilidade e à proporcionalidade, não se cogitando em algo absoluto. Ela desempenha importante papel na fixação do conteúdo do mínimo existencial que tem a ver com aquilo que o Estado deve assegurar positivamente e com aquilo que o Estado deve respeitar por força de um dever de não intervenção.

O intérprete sopesará todas essas circunstâncias para encontrar o melhor desfecho, mais que isso, para atribuir efetividade aos direitos, sejam eles fundamentais, sejam eles sociais.

O Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do Poder Judiciária brasileiro, em celebrada decisão monocrática, afirmou a necessidade da preservação, em...

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