Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e a aplicação da teoria da eficácia horizontal

AutorFabio Freitas Minardi
CargoAdvogado trabalhista, especialista em Direito Processual e Material do Trabalho - Professor de Direito do
1 Introdução: Direitos fundamentais
1. 1 Compreensão da Expressão “Direito Fundamental”

Prefacialmente, importante investigar o significado da expressão “direitos fundamentais” antes de se adentrar no tema em foco.

De início, cabe gizar que o conceito de direitos fundamentais não se confunde com o de direitos humanos, embora essa terminologia tenha sido fundida por alguns autores para o fim de denominá-la como “direitos humanos fundamentais”, seguindo de perto a terminologia da UNESCO, e também em que pese existam vários autores que sustentam a sua sinonímia.

A expressão “direitos fundamentais” é empregada principalmente pelos autores alemães, na esteira da Constituição de Bonn, que dedicava o capítulo inicial aos Grundrechte2.

Até a Emenda Constitucional n° 1/1969, o Brasil adotada a expressão “direitos individuais”, conforme se infere do seu artigo 153 (Capítulo IV – Dos Direitos e Garantias Individuais), como sinônimo da moderna denominação de “direitos fundamentais”. Naquela época vingava a influência dos albores do liberalismo, e a sua visão eminentemente individualista, que não distinguia as liberdades coletivas e não conhecia a definição de pessoa.

Ricardo Luis Lorenzetti3 afirma que a expressão “direitos fundamentais” é a mais apropriada porque não exclui outros sujeitos que não sejam o homem e também porque refere-se àqueles direitos que são fundantes do ordenamento jurídico e evita uma generalização prejudicial.

Ingo Wolfgang Sarlet apresenta um traço de distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre as expressões “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, sendo a primeira de cunho jusnaturalista, ainda não positivados; a segunda relacionado à positivação no direito internacional; e, a terceira, como direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado4.

Com efeito, podemos afirmar que o direito fundamental decorre de um processo legislativo interno de um determinado país, que eleva à positivação, sendo então um direito outorgado e/ou reconhecido. Já os direitos humanos possuem caráter supralegal, desvinculados a qualquer legislação escrita ou tratado internacional, pois pré-existe a eles.

Sidney Guerra explica que a partir da Declaração dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948, confirmou-se a idéia de que os direitos humanos extrapolam o domínio reservado dos Estados, invalidando o recurso abusivo ao conceito de soberania para encobrir violações, ou seja, os direitos humanos não mais matéria exclusiva das jurisdições nacionais5.

Destarte, a positivação dos direitos humanos, dando origem aos direitos fundamentais, é a nítida amostra da consciência de um determinado povo de que certos direitos do homem são de tal relevância que o seu desrespeito inviabilizaria a sua própria existência do Estado. Aliás, ninguém mais nega, hoje, que a vigência de direitos humanos independe do seu reconhecimento constitucional, ou seja, de sua consagração no direito positivo estatal como direitos fundamentais6.

No Brasil, os direitos fundamentais estão preconizados no Título II da CRFB/88, sendo que o constituinte considerou ilegítima qualquer proposta tendente a aboli-los, ex vi do artigo 60, § 4º da Constituição (as chamadas cláusulas pétreas).

1. 2Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais

Daniel Sarmento traz à tona a chamada “dimensão objetiva dos direitos fundamentais”, realçando que, com o advento do Estado Social, a concepção de direitos fundamentais, até então visualizados numa perspectiva subjetiva pelo então Estado Liberal, cuidando-se apenas de identificar quais pretensões o indivíduo poderia exigir do Estado em razão de um direito positivado na sua ordem jurídica7, passou a adotar um novo efeito, qual seja: “a dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política, constituindo, como afirmou Konrad Hesse, as bases da ordem jurídica da coletividade”8. Continua:

Com efeito, na medida em que os direitos fundamentais exprimem os valores nucleares de uma ordem jurídica democrática, seus efeitos não podem se resumir à limitação jurídica do poder estatal. Os valores que tais direitos encarnam devem se irradiar para todos os campos do ordenamento jurídico, impulsionando e orientando a atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário. Os direitos fundamentais, mesmo aqueles de matriz liberal, deixam de ser apenas limites para o Estado, convertendo-se em norte de sua atuação. Tal fenômeno foi bem captado por Perez Lu[ncaron]o, quando este assinalou que, com a passagem do modelo do Estado Liberal para o de Estado Social, “(...) los derechos fundamentales han dejado de ser meros límites al ejercicio de poder político, o sea, garantías negativas de los intereses individuales, para devenir um conjunto de valores o fines directivos de la accíon positiva de los poderes públicos”.

Mas não é só. A dimensão objetiva do reconhecimento de que os direitos fundamentais condensam os valores mais relevantes para determinada comunidade política. E, como garantia de valores morais coletivos, os direitos fundamentais não são apenas um problema do Estado, mas de toda a sociedade. Neste sentido, é preciso abandonar a perspectiva de que a proteção aos direitos humanos constitui um problema apenas do Estado e não também de toda a sociedade. A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária de direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais, de atuação de ONG’s e outras entidades do exercício responsável do direito de voto 9 .

Neste diapasão, JJ Gomes Canotilho reconhece a dimensão objetiva ao mencionar a “fundamentação objectiva” das normas consagradoras de direitos fundamentais, explicando:

Fala-se de uma fundamentação objectiva de uma norma consagradora de um direito fundamental quando se tem em vista o seu significado para a colectividade, para o interesse publico, para a vida comunitária. É esta fundamentação objectiva que se pretende salientar quando se assinala à liberdade de expressão uma função objectiva, um valor geral, uma dimensão objectiva para a vida comunitária (liberdade institucional) 10 .

Os direitos fundamentais, portanto, por concretizarem os valores máximos do ordenamento jurídico na forma propugnada na Lei Maior, devem subordinar toda a sociedade, nela incluída o Poder Público (Estado) e os particulares (pessoas físicas e jurídicas).

2 O elo de concretização dos direitos fundamentais: o princípio da dignidade da pessoa humana

O elo de concretude dos direitos fundamentais, indene de dúvidas, é o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no ápice da Carta Magna de 1988, do qual resulta a cláusula geral de tutela humana. Ana Paula de Barcellos esclarece que o conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou humanos. Isto é: terá respeitada a sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles11. Já para Luiz Edson Fachin, os direitos fundamentais, neles incluídos os direitos sociais, são invioláveis e inerentes à dignidade da pessoa humana; neles se traduzem e concretizam as faculdades que são exigidas pela dignidade, assim como circunscrevem o âmbito que se deve garantir à pessoa para aquela se torne possível12.

No Brasil, a Constituição da República de 1988 foi a primeira a estabelecer expressamente, como princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III). Certamente o constituinte originário de 1988 foi influenciado por outras Constituições que inseriam em seu texto a proteção à dignidade da pessoa, como fez, e.g., a Constituição Italiana de 1947 (artigo 3°: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais) e a Constituição Portuguesa de 1976 (artigo 1°: Portugal é uma República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária).

Os países europeus, atônicos pela crueldade e pela degradação desumana das duas grandes guerras mundiais, buscaram na noção cristã de “dignidade humana” um instrumento de proteção contra os abusos do Estado. Em um primeiro momento histórico, apenas o Estado se...

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