Direito ao próprio corpo e à autodeterminação da pessoa intersex

AutorÉrika Pretes
Páginas186-211
CAPÍTULO 4
DIREITO AO PRÓPRIO CORPO
E À AUTODETERMINAÇÃO DA
PESSOA INTERSEX
Como tratado nos capítulos anteriores as diretrizes médicas
para o manejo da intersexualidade orientam que as cirurgias e os
tratamentos hormonais para a (re)adequação sexual sejam
realizados, preferencialmente, nos primeiros anos de vida, com
vistas a garantir melhores resultados para a fixação do sexo e do
gênero na criança.1 Tais procedimentos são realizados em pessoas
cuja a capacidade é, temporariamente, limitada – pessoas menores
de 18 anos dependentes, portanto, da autorização de seus
responsáveis legais para o início do protocolo médico.2
Nas últimas décadas, tem chamado a atenção de operadores do
direito e de pesquisadores da bioética a emergência de denúncias
de pessoas intersexuais submetidas a intervenções cirúrgicas
precoces de readequação sexual e que alegam terem tido o direito à
autodeterminação e ao próprio corpo negados. As denúncias e
críticas versam sobre os danos físicos e psicológicos causados pelo
tratamento médico e, também, da ausência de informações sobre a
real necessidade, a extensão e o modo como tais cirurgias foram
realizadas em sujeitos que não possuíam sequer capacidade para
expressar suas vontades.3
A inclusão do menor no processo decisório é estimulada em
normativas médicas, como a Resolução proferida pelo CFM4 e em
Consensos médicos internacionais como de Chicago5 e o Consenso
Europeu6, tratados em momento anterior. Entretanto, tal inclusão se
mostra insuficiente visto que a integridade pessoal (física e moral) 7
da criança e futuro adulto resta comprometida quando a intervenção
é realizada logo nos primeiros anos de vida, sem que o sujeito
possa participar das decisões tomadas por seus representantes
legais e médicos.
Neste sentido, levando em consideração que as cirurgias tem
como principal objetivo – quando a condição não importa risco a
saúde ou vida do paciente – a adequação estética do órgão genital
a padrões sociais sexuais e de gênero, acreditamos ser de
fundamental importância analisar como protocolo atual tem negado
o direito ao próprio corpo e autodeterminação nos cuidados de
saúde às pessoas intersexuais.8
Neste ponto, acreditamos que o problema desta tese se coloca
cada vez mais em destaque: no Brasil, podem os representantes
legais decidir sobre a intervenção cirúrgica e hormonal para a
(re)adequação sexual sem o consentimento do sujeito diretamente
afetado – pessoa intersex menor de 18 anos?
Como abordado em capítulos anteriores, compreendemos que
as decisões tomadas pelas equipes de profissionais de saúde e
pelos familiares são realizadas em momento de muita apreensão,
que são decisões complexas e difíceis de serem tomadas,
entretanto, não se pode justificar a alienação do direito à integridade
pessoal de crianças intersex sob o argumento de que profissionais
de saúde e médicos decidem pela beneficência e melhor interesse
do menor. Acreditamos que é justamente a dificuldade e a
complexidade da decisão que impõe a necessidade da suspensão
das cirurgias de readequação sexual em pessoas intersex até que
tais sujeitos possam consentir para a realização de tais
intervenções, com fim de garantir a autodeterminação destes
sujeitos que se encontram ainda em desenvolvimento.
A este respeito, Morgan Carpenter argumenta que as
intervenções médico-cirúrgicas realizadas em pessoas menores de
18 anos devem ser percebidas como expressão da incapacidade
social de integração das pessoas intersexuais e de seus corpos
não-binários, em sociedades sexistas e heteronormativas como a
nossa. Não seria o corpo da pessoa intersex que deveria se
adequar cirurgicamente para caber nas normas e papéis de gênero,
mas a sociedade é que deve se adaptar para compreender a

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT