Direito comparado

AutorÉrika Pretes
Páginas223-282
CAPÍTULO 5
DIREITO COMPARADO
5.1 Colômbia
Nos últimos anos a Corte Constitucional da Colômbia tem se
destacado no cenário internacional em razão das ações
constitucionais sobre direitos humanos de pessoas LGBTQI+ em
suas decisões.1 São frutos das decisões da Corte a garantia do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade e de acesso e
permanência de pessoas trans aos estabelecimentos de ensino; o
reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, além
da garantia de seus direitos patrimoniais e previdenciários; a
proibição de discriminação de pessoas LGBTQI+ em
estabelecimentos públicos.
Entretanto, o que torna a Colômbia referência em diversos
trabalhos científicos sobre direitos humanos e população LGBTQI+
e que nos interessa, nesta presente tese, são as decisões sobre
intersexualidade e direito ao próprio corpo. A Colômbia é
reconhecida por ter sido o primeiro país a estabelecer os
parâmetros para o manejo e tratamento médico de pessoas intersex
menores de idade. No ano de 1999, a Corte Constitucional
colombiana analisou diversos casos envolvendo a tensão ético-
jurídica do consentimento livre e informado para intervenções
médico-cirúrgicas em pessoas intersexuais menores de idade.2
A Corte analisou casos de referentes a legitimidade das
cirurgias precoces em crianças intersexuais em duas outras
ocasiões: em 2002, na Ação de Tutela instaurada contra o Seguro
Social, Sentença T-541.423, em que o serviço de saúde se recusou
a intervir cirurgicamente para a correção da genitália de um menor
de 10 anos de idade3 e; em 2014, na Sentença T-622/2014.
No ano de 1990, na cidade de Bogotá, nasceu N.N., uma
criança que foi designada como menina pela parteira que auxiliou
em seu parto, não apresentando nenhuma característica que
testemunhasse o contrário. Assim designada, N.N. foi criada como
pertencente ao sexo feminino, até que com 3 anos de idade, ao ser
examinada por um pediatra, foi diagnosticada como portadora de
uma condição intersex, nomeada como “pseudo-hermafroditismo
masculino”, transtorno hormonal que impede a síntese da
testosterona. N.N. possuía um clitóris com cerca de 3 centímetros
de comprimento (semelhante a um pênis), a estrutura onde
deveriam estar os grandes lábios possuíam forma e textura
semelhante à do saco escrotal, com gônadas simétricas de cerca de
um centímetro nos dois lados, e um único orifício no períneo.4
Ao receber o diagnóstico de pseudo-hermafroditismo masculino
e ouvir sobre o protocolo médico-cirúrgico de tratamento para tais
condições, qual seja, readequação dos genitais com a extirpação
das gônadas, remodelação do clitóris (clitoroplastia/clitoridectomia)
e dos lábios, e a construção de uma vagina. De acordo com o
pediatra do Instituto de Seguros Sociais (ISS), que diagnosticou
N.N., a cirurgia era prioritária e deveria ser realizada antes da
puberdade, pois, apesar da presença de um falo, que para um
clitóris era demasiado grande, “nunca seria igual a um pênis e não
teria possibilidade de funcionar como tal”. 5
Ao contrário do que foi orientado pelo primeiro médico pediatra,
a equipe de profissionais do ISS que deveria realizar a cirurgia de
N.N., se recusou a fazer tal intervenção. De acordo com os médicos,
a jurisprudência da Corte Constitucional sobre livre consentimento
informado proibia tal intervenção médico-cirúrgica até que o menor
tivesse capacidade para consentir livremente. Informaram que não
caberia a mãe de N.N. decidir sobre o momento ou a necessidade
da readequação genital da criança. E, ainda, que só poderiam
prosseguir com o protocolo após devida autorização da Corte
Constitucional, único órgão que poderia suprir a ausência de tal
capacidade do Poder Familiar, ou quando a criança fosse capaz
juridicamente de fornecer o livre consentimento informado.6
A mãe de N.N. entrou, então, com um pedido de tutela de
urgência a fim de dar início ao protocolo cirúrgico e hormonal de
readequação sexual da criança, sob a alegação de que demora para
dar início ao tratamento poderia resultar em dano irreversível ao
correto desenvolvimento psicológico, fisiológico e social da criança,
que contava na época do ajuizamento da ação com 3 anos de
idade:
“A mãe considera, então, que sua filha está sendo violada em seus direitos à
igualdade, ao livre desenvolvimento da personalidade e à proteção especial da
infância, uma vez que a criança tem o direito de “ter sua sexualidade definida a
tempo para garantia de seu normal desenvolvimento pessoal e social”. Por esta
razão, ela pede ao juiz de tutela para permitir que, em sua condição de mãe, e
como guardiã da criança, autoriza “as cirurgias que minha filha precisa para a
remodelação de seus genitais e o tratamento médico que em consequência disso
se exige”. Da mesma forma, e em defesa do direito à privacidade da menina N.N.,
a mãe solicita que o presente processo judicial não seja publicado, de acordo com
o disposto nos artigos 25, 300 e 301 do Código dos Menores.” (Tradução livre)7
O juiz de primeira instância negou o pedido da mãe da criança
N.N. o processo chegou ao Tribunal, também foi negado. Quando
chegou a Corte Constitucional da Colômbia, a criança N.N.
contava com 7 anos de idade.
A abordagem jurídica da questão intersexual na Sentença SU-
337 da Corte Constitucional da Colômbia se desenvolveu a partir
das discussões sobre a bioética no manejo médico-cirúrgico por
parte dos profissionais de saúde e autodeterminação e o livre
consentimento informado da pessoa intersex menor de idade,
considerada incapaz para fins jurídicos.8
Como destacado pelas juristas colombianas Catalina Velásques
Acevedo, Patrícia Gonzáles Sánchez, Isabel Sarmiento Echeverri, o
embate entre autodeterminação/autonomia do paciente menor de
idade e da beneficência nas decisões tomadas pelos profissionais
de saúde haviam sido objeto de debate na Corte Constitucional
em outros processos:9
“Autonomia vs. Expressão paternalista da beneficência: O Tribunal Constitucional
colombiano em suas decisões de revisão T 477 de 1995, SU 337 de 1999, T 551
de 1999, T 692 de 1999, T 1390 de 2000 e T 1025 de 2002, considerando os
direitos e princípios constitucionais, aludiu principalmente à tensão entre o
Princípio da autonomia que dá prevalência à decisão apropriada do paciente
menor, de modo que é ele próprio quem decide a intervenção versus a expressão
paternalista do princípio da beneficência do profissional médico que recomenda

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