Direito e estado de exceção: no traço dos cacos de Walter Benjamin/Law and state of exception: on the path of Walter Benjamin's fragments.

AutorDyniewicz, Letícia Garcia Ribeiro

Introdução

No Direito, a leitura clássica do conceito de estado de exceção é realizada por Carl Schmitt, que recupera a tradição do Direito Público romano para tratar do tema e afimar que é neste momento que se apresenta a figura do soberano. Walter Benjamin, contemporâneo do jurista alemão, contrapõe-se a essa interpretação, ao afirmar que o estado de exceção é, na verdade, a regra e, assim, age como um instrumento do Direito em nome do progresso, do fascismo e dos vencedores de maneira constante. Mais que isso, o próprio Direito, tal qual afirma Schmitt (1), se constituiria, também para Benjamin, a partir de um ato inaugural violento que é perpetuado por ele mesmo. Nesse sentido, torna-se imprescindível refletir sobre a natureza violenta do Direito e aquilo que o excetua a partir da ótica benjaminiana.

Este artigo tem como objetivo desenvolver, além das noções de Direito e estado de exceção, a correlata possibilidade de ruptura na ordem jurídica, apontada por Benjamin nos textos que foram selecionados. Tal ruptura se daria por meio da ação histórica que irrompe no verdadeiro estado de exceção. Ela é necessária, no pensamento benjaminiano, porque o Direito, segundo lhe parece, é um instrumento violento, seja o Direito Positivo ou o Direito Natural.

Benjamin concebe a possibilidade de uma ruptura no tempo em seu conceito de Jetztzeit. Esse seria um momento da História que compreenderia todo tipo de tensão, de tragédia e de barbárie já vivida pela humanidade e, justamente por isso, traria consigo a possibilidade de redimir os vencidos. Essa ruptura será interpretada neste trabalho como o verdadeiro estado de exceção benjaminiano, no qual se rompe com a lógica do Direito que o utiliza como um instrumento para sua própria manutenção.

Para compreender o que está escrito acima, é preciso percorrer algumas linhas do tortuoso trajeto benjaminiano, o que será feito em duas partes. Na primeira, apresenta-se uma reflexão sobre as concepções metodológicas e políticas de História que levaram Benjamin a pensar em um permanente estado de exceção. Para romper com essa ordem, seria necessário entender a história tal qual o autor propõe. Nesse sentido, com intuito de espreitar o verdadeiro estado de exceção proposto por Benjamin, sua obra será interpretada no intuito de compreender o que aponta como possibilidade de ruptura na História. Somado a isso, será preciso ansalisar a ideia que o autor propõe sobre o tempo, bem como suas críticas às concepções modernas de História, para, com isso, estimar, de forma mais precisa, o que seria a exceção.

Já na segunda parte, será feita a discussão sobre de que forma o Direito se constitui a partir da violência e se mantém por meio dessa para discutir a possibilidade de ruptura dessa ordem. Para tanto, será preciso analisar os conceitos de Direito e estado de exeção em duas obras em especial: Sobre o Conceito de História e Crítica à Violência (2). Além disso, serão analisados intérpretes clássicos de Benjamin - como Jacques Derrida, Giorgio Agamben, Stéphan Mosès, Judith Butler e Michel Lõwy-, bem como jovens pesquisadores, como Rafael Vieira, Sami Khatib, Jonnefer Barbosa e Maria Isabel Vilella, que têm se destacado na análise da mesma perspectiva adotada nesse texto.

A partir das trilhas tortuosas propostas por Benjamin, propõe-se vislumbrar uma ação ética na história para uma nova forma de organização política desprendida dos paradigmas violentos que constituem a natureza do Direito. Buscar o rastro da violência, tal como se pretende aqui, tem como intuito espreitar a possibilidade de ruptura com a ordem jurídica, justamente para colocar fim neste ciclo descrito por Benjamin como inescapavelmente violento. Esta visão é aqui endossada, e para isso é preciso coletar os cacos da história em busca do verdadeiro estado de exceção proposto pelo autor.

  1. Jetztzeit: é possível uma ruptura na História?

    O texto Sobre o Conceito de História (3) (Über den Begriff der Geschichte), muito provavelmente pela sua publicação póstuma, é um bom exemplar da dificuldade de se interpretar o pensamento benjaminiano. Toda sua estrutura é fragmentada e permeada por metáforas que se apoiam tanto no materialismo histórico (sem deixar de criticá-lo), quanto na teologia (4) e na estética.

    Outro elemento importante desse texto é o fato de que ele é fortemente influenciado pela guerra e pela ascenção do fascismo. Esses eram temores que influenciavam grande parte da intelectualidade alemã no primeiro semestre de 1940 que, ao que tudo indica, foi a data em que Benjamin teria "concluído" a escrita das Teses da História (5). Como escreve a Gretei Adorno: "A guerra e a constelação que a gerou levou-me a pôr no papel algumas ideias das quais posso dizer que andavam comigo, ou melhor, de mim próprio escondidas, há perto de vinte anos" (BENJAMIN, 2004: 150). Benjamin teria compreendido a modernidade do fascimo, bem como sua relação intrínseca com a ideia de progresso e da sociedade industrial-capitalista (LÕWY, 2005).

    Segundo Mosès, a Primeira Guerra seria uma experiência fundadora em que se pode perceber o absurdo da História, bem como o fim da tradição, ou seja, de uma memória coletiva que se passa de geração a geração como um tesouro (MOSÈS, 2009). Essa experiência teria deixado como legado para Benjaminao a ideia de que não era possível manter uma noção de progresso histórico face a todo sofrimento humano. Tal percepção teria o encaminhado a pensar o tempo como uma justaposição de momentos com sentidos diferentes e que não se somam em direção ao progresso.

    Percebe-se que o texto é permeado pela questão epistemológica do conceito de História, crítico e propositivo e também por um elemento político. A primeira seria a de reencontrar a 'Verdadeira imagem do passado" a partir de uma imagem dialética, composta por milhares de fragmentos e, por isso, complexa e não linear (GAGNEBIN, 1999). Já o elemento político, consiste em pensar sobre o verdadeiro estado de exceção. Nesse sentido, o elemento histórico-espistemológico e o político caminham lado a lado nas Teses, pois só a partir de outra concepção de História é que é possível o verdadeiro estado de exceção.

    Em 1940, Benjamin, em carta a Adorno, afirmou que desenvolvia um texto no qual seu intuito era destacar sua forma de ver a História da maneira como o positivismo a faz. Assim, nas Teses, Benjamin irá criticar, a partir do "denominador comum" (LÕWY, 2005: 33) do positivismo, duas concepções de História que, apesar de diferentes, tratam do tempo da mesma forma: como homogêneo e vazio. A primeira delas é a concepção historicista (ou burguesa), que concebe o passado como uma imagem eterna. Já a segunda liga-se à social democracia e ao marximo vulgar - trata do passado como uma experiência única (Tese XVII).

    Compreender a História a partir da homogeneidade do tempo suscita três elementos: a ideia de continuidade, a de causalidade e a de progresso (MOSÈS, 2009). A ideia de continuidade e de causalidade levariam ao entendimento de que a História é uma sucessão de fatos encadeados linearmente, com um encaminhamento teleológico. Já em relação ao progresso, existiria um processo em escala de ascenção econômica e moral infinitos do homem.

    Tal como o restante do positivismo, o historicismo teria seus pressupostos metodológicos emprestados das ciências naturais do século XIX. Mosès o definiu como uma:

    crença na objetividade dos "fatos"; o fato histórico concebido no modelo de "fatos científicos"; uso de um método puramente indutivo que consiste na acumulação de fatos e leis gerais abstratas da qual a objetividade era considerada tão certa quanto os fatos eles mesmos (MOSÈS, 2009: 67). Essa cientificidade do método tinha também a pretensão de completude da história, sem levar em consideração que há ali algo esquecido - a narrativa dos perdedores.

    Tais historiadores atribuiriam uma lógica externa a esses eventos, que não é inerente à própria visão do passado, sem considerar a complexidade e a dialética das relações do passado que não são possíveis de apreensão no presente (FONSECA, 1997). Esse método de olhar para a História impede que se olhe o passado como repleto de fragmentos. Então, passa-se a tê-lo como uma cena histórica única, como um objeto imutável.

    Na VII Tese, Benjamin afirma que esse é o método da História que nutre uma empatia em relação aos vencedores, ou seja, com os detentores do poder, e o faz por meio do discurso de neutralidade. Quando, ao contrário, tal visão da História está marcada por uma forte valoração positiva da narrativa dos vencedores.

    Exergar a História dessa perspectiva também carregaria consigo a esfera do conformismo, já que essa não se interessa em olhar para o passado como uma narrativa complexa, a qual carrega sempre colado a um documento de cultura também um documento de barbárie. Assim, se invisibiliza um sem-número de pessoas que trabalharam para que grandes obras, sejam elas científicas ou culturais, fossem realizadas. Implica aqui afirmar que, para o autor, cultura ou civilização e barbárie formam uma "unidade contraditória" (LÕWY, 2005: 75) e, portanto, não são elementos que se opõe, nem mesmo etapas diferentes da História.

    Agamben, em seu texto Tempo e História, afirma que essa é uma visão oitocentista da História, que a considera como um processo de mera sucessão de momentos, mera cronologia que levaria a um progresso contínuo e infinito. Nesse sentido, afirma que o sentido da história só é apreendido no seu conjunto, jamais no "agora pontual e inapreensível" (AGAMBEN, 2005: 118).

    A outra forma de olhar a História, analisada por Benjamin e já citada no início do texto, seria a da social democracia ou do marxismo vulgar, no qual a crítica ao progresso também é bastante forte. Este materialismo histórico, que teria sido adotado, segundo o autor, na condução da prática política da República de Weimar e da Segunda Internacional também adotaria a concepção de tempo histórico vazio, homogêneo e linear (GAGNEBIN, 1999). Do mesmo modo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT