O direito fundamental ao trabalho digno e os processos de subjetivacao: uma leitura cruzada entre Direito, Marxismo e Psicanalise numa experiencia empiricamente vivenciada/The fundamental right to decent work and the subjective processes : a cross-reading between law, marxism and psychoanalysis in an empirically lived experience.

AutorRodrigues, Adriana
  1. Introducao

    O presente artigo tem por tema o direito fundamental ao trabalho digno, com enfase na sua dimensao de elemento constituinte da psique dos sujeitos inseridos numa sociedade de mercado e consumo, marcada por profundas disparidades sociais internas derivadas, em grande medida, de sua localizacao periferica e subdesenvolvida na economia-mundo.

    Neste contexto, desenvolvem-se algumas reflexoes a partir dos referenciais teoricos da psicanalise freudiana e do marxismo, acerca da centralidade do trabalho na constituicao psiquica do sujeito. Estas duas vertentes de pensamento sao utilizadas a partir da observacao desta tematica na vida de trabalhadores rurais pertencentes a uma comunidade de agricultores sem-terra, que apresentam uma trajetoria de vida marcada por uma longa e sofrida caminhada em busca de trabalho.

    Aplicando o texto O mal estar na cultura, procuramos dialogar com a teoria freudiana, abordando os conceitos de Eros e Ananke, ou amor e necessidade, como categorias fundadoras da civilizacao humana, buscando ai a concepcao de trabalho apresentada neste importante texto de Freud. Para dar seguimento a analise, buscamos em Marx, especificamente nos conceitos de alienacao e estranhamento, outros instrumentos teoricos que nos auxiliassem a pensar a constituicao objetiva e subjetiva destes sujeitos na sua relacao com o trabalho.

    E da leitura cruzada entre esses dois autores que, ao fim, lancamos algumas reflexoes sobre momentos importantes da trajetoria vivida por Pedro e Clara, trabalhadores rurais, dedicados a agricultura familiar, que depois de um longo percurso em busca do trabalho, sao hoje integrantes de um assentamento do MST, buscando refletir sobre o papel que uma trajetoria como essas pode exercer na efetivacao do direito fundamental ao trabalho digno e na ampliacao dos direitos subjetivos dos agentes envolvidos.

  2. A categoria trabalho no texto freudiano O mal estar na cultura: uma possibilidade de leitura

    Sigmund Freud no texto de 1930 O mal estar na cultura (2010) preocupado com o nivel de sofrimento do homem moderno e buscando trazer alguma contribuicao para a compreensao deste sofrimento, foi buscar em alguns temas especificos da antropologia social da epoca (1), elementos que abordados sob a otica da psicanalise poderiam ajudar a melhor compreender esta condicao. A partir destes estudos, Freud lancou a hipotese de que a civilizacao teria sua origem marcada por dois elementos, ou sentimentos, fundamentais: Eros e Ananke, ou, o amor e a necessidade (2). Desenvolveu seu argumento afirmando que possivelmente estes dois sentimentos nao atuariam de forma inteiramente vinculada, o que permitiria a homens e mulheres buscar apenas na natureza a satisfacao das suas necessidades mais elementares.

    Contudo, o sentimento do amor--ou Eros--nao se contentaria com a condicao de visitante esporadico, passando a ocupar um espaco progressivamente maior na vida destes sujeitos, ate transformar-se em um companheiro de presenca constante, o que os levaria a buscar satisfacao para alem da natureza. Doravante atuariam juntos, fazendo com que a satisfacao das necessidades trafegasse pelas vias do amor e o amor pelas vias da necessidade. Homens e mulheres passariam a satisfazer suas necessidades sob as bases do amor e a direcionar suas energias no sentido de manter consigo seu objeto de amor.

    Segundo Freud (2010, p. 103) "depois que o homem primitivo descobriu que estava em suas maos--literalmente falando--melhorar seu destino na Terra por meio do trabalho, nao lhe pode ser indiferente o fato de que o outro trabalhasse com ele ou contra ele", a partir de entao a relacao com a natureza passaria a ser percebida nao mais como tarefa individual. O passo decisivo no processo desenvolvimento civilizacional teria sido a substituicao do poder do individuo pelo da comunidade, resultando na constituicao dos grupos consanguineos, posteriormente denominados familias. A partir de entao, passariam a priorizar o contato com seus pares e a organizar-se em grupos maiores, priorizando a vida comunal:

    A convivencia humana so se torna possivel apenas quando se reune uma maioria que e mais forte do que cada individuo e que permanece unida contra cada um deles. Na condicao de "direito", o poder dessa comunidade se opoe entao ao poder do individuo, condenado como "forca bruta". A substituicao do poder do individuo pelo poder da comunidade e o passo cultural decisivo. Sua essencia consiste no fato de que os membros da comunidade se restringem em suas possibilidades de satisfacao, enquanto o individuo nao conhecia tais restricoes. A exigencia cultural seguinte, portanto, e a da justica, isto e, a garantia de que o ordenamento juridico estabelecido nao venha a ser quebrado em favor de um individuo. [...] O desenvolvimento cultural posterior parece tender no sentido de que esse direito nao seja mais a expressao da vontade de uma comunidade restrita--casta, camada da populacao, grupo etnico -, que se comporta em relacao a outras massas, talvez mais amplas, de modo semelhante a um individuo violento. O resultado final deve ser um direito para o qual todos--pelo menos todos que sao capazes de tomar parte numa comunidade--tenham contribuido com o sacrificio de seus impulsos, e que nao permita que ninguem--mais uma vez com a mesma excecao--se torne vitima da forca bruta (FREUD, 2010, pp. 97-98). A hipotese de Freud era de que, em principio, o trabalho ocuparia uma dimensao domestica, ou seja, eram os membros da propria familia que auxiliavam e dividiam as tarefas concernentes ao trabalho a ser realizado. Posteriormente, com o aumento das atividades, foi necessario um aumento tambem da forca de trabalho empregada, o que teria feito com que se agregassem outras pessoas, e assim sucessivamente, ate se formarem as comunidades. Dessa forma, o trabalho, fundamentado nas relacoes sociais, passaria a ser percebido como fonte de preservacao da vida no sentido mais amplo do termo, vale dizer, a familia e o trabalho, instancias regidas por Eros e Ananke, constituiram-se em espacos de satisfacao de necessidades, amparo e acolhimento.

    Nestas conjecturas, os elementos que nos parecem de fundamental importancia para as reflexoes aqui iniciadas, estao na forma como Freud percebe e descreve o trabalho, ou seja, como dimensao de amparo e protecao.

    Para Freud nenhuma outra tecnica para a conduta da vida prenderia o individuo tao firmemente a realidade quanto a enfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, lhe forneceria um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A vida em comunidades teria se tornado possivel justamente pela capacidade de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais sejam eles narcisicos, agressivos ou mesmo eroticos, para o trabalho profissional e para os relacionamentos humanos a ele vinculados.

    Para Freud o trabalho e destacado como categoria central no processo civilizatorio, ja que para viver em comunidade teria sido necessario sublimar (3) desejos e sentimentos que se efetivados, implicariam em desgaste para os outros membros da comunidade e, em ultima analise, ate em aniquilacao da mesma. Direcionados para o trabalho, ou sublimados, estes impulsos, por vezes eroticos, narcisicos e/ou agressivos, se tornariam altamente criativos e construtivos. Desse ponto de vista, o trabalho ultrapassaria a dimensao de satisfacao de necessidades objetivas, abarcando a realizacao indireta de outros tantos desejos e necessidades, transformando-se em espaco fundamental para uma vida subjetiva saudavel.

    Entretanto, ao longo da historia da humanidade essa dimensao de protecao, amparo e acolhimento tanto das necessidades objetivas quanto subjetivas sofreriam modificacoes proporcionais as transformacoes dos modos de producao historicos, sobretudo, a partir do desenvolvimento do sistema capitalista, acabando por cindir a harmonica uniao entre Eros e Ananke. Em consequencia, o trabalho como sinonimo de amparo, como espaco da realizacao plena do sujeito, passaria a ser cada vez mais um privilegio de poucos, evidenciando uma clivagem progressiva entre amor e necessidade, afeto e trabalho:

    (...) com o advento do capitalismo o mundo enfrenta pela primeira vez a ruptura entre a producao da existencia e reproducao da vida. O mundo do trabalho e o mundo do afeto passam a se desenvolver em dois universos distintos, a fabrica e o lar. Quando o modo de producao separa o produtor de seu produto, transforma os trabalhos diferentes, portanto portadores de subjetividade diferentes em iguais, mercadoria como qualquer outra a ser vendida no mercado, transformacao do trabalho em forca de trabalho, impedindo a subjetivacao do individuo no trabalho e empurrando o ser subjetivo do homem para fora da fabrica, restrito ao lar (CODO, SAMPAIO & HITOMI, 1993, P. 193). Freud observou essa clivagem entre afeto e trabalho, ou o distanciamento crescente entre os reinos de Eros e Ananke, a partir das manifestacoes de insatisfacao do homem com o trabalho, fato que e possivel inferir a partir de sua afirmacao de que, como caminho para a felicidade, o trabalho e pouco apreciado pelos seres humanos (FREUD, 2010, p. 70). Contudo, neste texto, o autor nao desenvolve uma discussao acerca das causas especificas deste sofrimento, o que nos leva a buscar nos conceitos de alienacao e estranhamento de Karl Marx, uma possibilidade de dialogo com as ideias ate aqui trabalhadas, a fim de continuar e aprofundar a compreensao sobre a progressiva cisao entre o mundo do trabalho e o mundo do afeto e suas implicacoes no cotidiano do homem contemporaneo.

  3. A separacao entre forca de trabalho e meios de producao: uma cisao para alem do mundo do trabalho

    Karl Marx no texto Manuscritos economico-filosoficos, datado de 1844, traz relevantes contribuicoes para a compreensao dessa ruptura entre o mundo do trabalho como dimensao de afeto e protecao, transformado num espaco de sofrimento para uma parcela consideravel da humanidade. Ao contrario de Freud que apenas...

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