O direito fundamental à convivência familiar de crianças e jovens com remotas chances de adoção: um breve estudo do apadrinhamento civil português

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama e Carla Ferreira Fernandes
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Mestra em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas259-283
O DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA
FAMILIAR DE CRIANÇAS E JOVENS COM
REMOTAS CHANCES DE ADOÇÃO:
UM BREVE ESTUDO DO
APADRINHAMENTO CIVIL PORTUGUÊS
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ (graduação
e pós-graduação). Professor permanente do PPGD da UNESA. Professor Titular de
Direito Civil do IBMEC/RJ. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Carla Ferreira Fernandes
Mestra em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora
do Programa de pós-graduação em Direito Civil-Constitucional da UERJ. Advogada.
Membro da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB/RJ.
Sumário: 1. Introdução; 2. O direito à convivência familiar: critérios da excepcionalidade e
da provisoriedade da institucionalização e caminhos para sua efetivação; 2.1. O apadrinha-
mento civil; 2.1.1. Conceito, princípio da subsidiariedade da adoção, quem pode apadrinhar
e quem pode ser alhado; 2.1.2. Objeto da relação jurídica de apadrinhamento; constituição
do vínculo; a dinâmica da relação; modicação; outros aspectos: alimentos, impedimentos
e direitos sociais; 3. Considerações nais; 4. Referências
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas poucas instituições sofreram tantas transformações como
a família. Ao mesmo tempo em que o vínculo matrimonial se f‌lexibilizou e tornou os
casamentos dissolúveis na velocidade do desejo de seus contratantes, indivíduos ju-
ridicamente excluídos da proteção familiar reivindicaram abrigo a um ordenamento
normativo baseado em estereótipos seculares. Companheiros e companheiras, f‌ilhos
extramatrimoniais, f‌ilhos adotivos, f‌ilhos socioafetivos, padrastos e madrastas, pais, mães
e avós de “consideração”, enf‌im, todos aqueles que pelo cuidado ocuparam um lugar de
afeto ingressaram na esfera do Direito de Família. Criticada, remodelada e f‌lexibilizada,
a família continua sendo desejada, tanto que variados formatos dignif‌icantes para seus
integrantes mereceram proteção estatal1.
1. Sobre as políticas de reconhecimento pela obtenção de um status familiae e os paradoxos da pós-modernidade em
que ao mesmo tempo a família é criticada e desejada, conferir ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem.
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Para as crianças e os jovens, porém, pertencer a uma família não é uma questão de
escolha ou possibilidade, mas uma necessidade vital. O direito à convivência familiar na
infância e juventude assume o mesmo patamar do direito à vida2, não havendo dignidade
possível, para um ser em desenvolvimento carente de todo o tipo de referência e cuidado,
longe de uma estrutura familiar, seja ela qual for.
Por isso o direito à convivência familiar da criança e do adolescente possui previsão
legislativa em âmbito internacional desde 1959, na Declaração Universal dos Direitos
da Criança, cujo princípio VI, ao prever o direito ao amor e à compreensão por parte dos
pais e da sociedade, assevera que “sempre que possível a criança deverá crescer com o
amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambien-
te de afeto e segurança moral e material”. Vários diplomas internacionais posteriores
espelham a preocupação da comunidade internacional em proteger, cada uma em seu
âmbito de regulação, o direito da criança e do jovem de conviver em família e crescer de
forma estruturada, sadia e harmonicamente3. Aliás, a questão da proteção da criança e
do adolescente, e o seu direito a conviver em família, não é um fenômeno da moderni-
dade, mas uma preocupação que atravessa séculos e que desaf‌ia ainda hoje as sociedades
contemporâneas4.
No ordenamento nacional, o direito à convivência familiar e comunitária teve aco-
lhida no artigo 227 da Constituição Federal, ao lado de outros direitos fundamentais,
como à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à prof‌issionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade, devendo ser garantido pela família, pela sociedade
e pelo Estado, com absoluta prioridade.
Como direito fundamental, o direito à convivência familiar encontra-se regulado
pelo Estatuto da Criança e do AdolescenteLei 8.069/1990, entre os artigos 19 e 52-D,
de acordo com uma classif‌icação das famílias, em natural5 - extensa ou ampliada -, e
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 10.
2. MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos.
9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 143.
3. A Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças foi concluída em Haia no ano de
1980 com o objetivo de proteger crianças e jovens retirados de seus domicílios e internalizada no Brasil por meio
do Decreto 3.413 de 14 abr. 2000, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3413.htm. A
Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional foi concluída
no ano de 1993, reconhecendo que a criança deve crescer em meio familiar, podendo a adoção internacional
apresentar vantagem em dar uma família permanente a quem não pode encontrá-la em seu país de origem, sendo
introduzida no Brasil pelo Decreto 3.087 de 21.06.1999, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/d3087.htm. As Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de
Riad - foram elaboradas no ano de 1990 e reúnem a necessidade de cada país desenvolver esforços para preservar
a integridade da família, unidade primária de integração social da criança.
4. Sérgio Luiz Kreuz em um vasto retrospecto histórico desde a antiguidade até a contemporaneidade mostra que o
abandono da criança e do adolescente e o afastamento de suas famílias não é um fenômeno atual, mas recorrente
em cada fase da história, ainda que por motivos diferentes, passando crianças e jovens por orfanatos, educandá-
rios, santas casas, casas de misericórdia, unidades de acolhimento, etc. (KREUZ, Sergio Luiz. Direito à convivência
familiar da criança e do adolescente: direitos fundamentais, princípios constitucionais e alternativas ao acolhimento
institucional. Curitiba: Juruá, 2012). Para um maior aprofundamento da história da criança e da família, cfr., dentre
outros, ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2016 e SÁ, Eduardo
(Coord.). Abandono e Adopção. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 9-15.
5. Art. 25 da Lei 8.069/1990: “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e
seus descendentes”.
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