Direito e historicidade: uma abordagem thompsoniana de Pachukanis /Law and historicity: a thompsonian approach of Pachukanis.

Autorda Silva, Vinicius Lima

Introdução

Pachukanis, com sua Teoria geral do direito e o marxismo, possui significativo impacto no interior das reflexões marxistas do Direito no Brasil (1). Trata-se de um campo de investigação já explorado e desenvolvido, seja pela pioneira abordagem althusseriana inaugurada por Márcio Naves (2), a proposta do chamado Direito Insurgente (3) ou, ainda, pela tese da reprodução sócio-jurídica do capitalismo sustentadapor Guilherme Leite Gonçalves (4), entre outras leituras. Não obstante, busco contribuir com uma perspectiva ainda não mobilizada no interior desse campo, o materialismo histórico de E.P Thompson, através da qual pretendo apresentar um problema de pesquisa assentado na articulação entre Direito e conhecimento histórico.

O presente artigo se estruturou a partir da indagação quanto ao modo de construção de uma abordagem teórica da obra de Pachukanis capaz de avançar a compreensão da relação entre Direito e historicidade. Deste modo, desenvolvi a hipótese de que a concepção de história e de conhecimento histórico, tais como formulados por Thompson, importam em chaves analíticas para, de um lado, delimitar o escopo teórico da crítica pachukaniana e, por outro lado, indicar a historicidade como abordagem que lhe é necessariamente complementar.

Destaco, de início, fundamentado na contribuição histórico-teórica de Thompson, o materialismo histórico como articulação necessária entre modos de interrogação, um atinente às formas sociais e outro à historicidade. Para desenvolver tal proposição, interpreto o sentido da dialética em Thompson enquanto prática de pensar em contrários, um modo de apreender a lógica do processo histórico como uma realização fluente, a partir da qual a contradição é apreendida como "momento de possibilidades coexistentes". Retomo o entendimento de Thompson, moldado em conexão com Raymond Williams, da noção de determinação como "fixação de limites e exercício de pressões", e como essa se relaciona diretamente com o conceito de experiência e de agência, próprios à historicidade. Tento elucidar como tal articulação entre estrutura, determinação, experiência e agência permitiu a Thompson tanto formular uma concepção de luta de classes e classes original quanto afirmar a centralidade analítica de tais conceitos.

Em seguida, retomo as principais categorias desenvolvidas por Pachukanis em A teoria geral do direito e o marxismo, onde mostro o alcance de seu modo de interrogação do Direito. Por intermédio dessa delimitação teórica, apresento uma análise do argumento pachukaniano que compreende o político como momento da determinação do Direito; reconhece as diferenças conceituais entre forma jurídica e Direito, entre equivalência e igualdade e que afasta a redução da determinação do Estado à sua representação jurídica.

Posteriormente, articulo as contribuições de Raymond Williams e Thompson para o conceito de hegemonia à noção de arena de conflitos a fim de propor uma formulação de legalidade como processo complexo--institucional, social e político--de cristalização de relações de poder, a partir da qual esboço uma abordagem do Direito em sua historicidade.

Evidencio, por fim, como Pachukanis, em Lênin e os problemas do direito, opera em um grau de abstração distinto daquele empregado em A teoria geral do direito e o marxismo. Em virtude da possibilidade oferecida por tal deslocamento, construo um diálogo mais contundente entre as formulações de Thompson e Pachukanis, através do qual indicarei a imprescindibilidade da abordagem do Direito em sua manifestação complexa, isto é, em sua processualidade histórica.

  1. A tradição de crítica ativa do materialismo histórico: construindo uma abordagem da crítica do direito de Pachukanis

    A presente mobilização de Thompson segue a indicação de Ellen Wood (2003, p. 53), para quem há, tanto nas proposições diretamente teóricas quanto, e ainda mais, na prática historiográfica thompsoniana, os fios perdidos de uma tradição marxista, uma tradição de crítica ativa do materialismo histórico (MATTOS, 2012, p. 8). Atribuo três aspectos distintivos da intervenção político-teórica de Thompson em tal tradição: a afirmação do caráter socialmente ativo do objeto do conhecimento histórico; a dimensão teoricamente distinguível (5) da luta de classes e o humanismo teórico. Neste tópico, concentro-me em retomar sua análise de conhecimento histórico, com ênfase no papel da luta de classes em sua estruturação.

    1.1 Conhecimento histórico: formas sociais e historicidade

    O objetivo específico do presente item é argumentar que a história é um processo estruturado por formas sociais. Para fundamentar esta proposição, mobilizo as formulações teóricas constitutivas da prática historiográfica de Thompson, cuja compreensão de história é articulada em torno do problema da natureza da determinação do ser social em relação à consciência social. Por sua vez, a definição de determinação não pode ser efetivamente mobilizada sem a exposição de alguns pressupostos teóricos, os quais, tendo em vista o objeto do presente trabalho, passo tão somente a indicar.

    Deve-se considerar a determinabilidade do objeto real, inclusive sociológica e ideologicamente, em relação ao pensamento no processo de produção do conhecimento, o que pode ser visualizado, especialmente, na crítica de Thompson (1981, p. 15-20) à concepção althusseriana de objeto do conhecimento. O decisivo aqui é que se o objeto determina tanto a definição do problema quanto o seu modo de exposição, o conhecimento histórico deve observar a particularidade de seu objetosujeito, qual seja sua dimensão ativa.

    Articulada a essa compreensão do objeto real, deve-se observar que dialética em Thompson refere-se ao modo de abordagem caracterizado como prática de pensar em contrários, "um hábito de pensamento (em opostos coexistentes, ou em "contrários") e como expectativa quanto à lógica do processo" (ibid, p. 129). Em tal acepção, a dialética é prática de apreensão do modo pelo qual a contradição--ou as múltiplas formas de conflitos postos pela agência humana na processualidade histórica--perpassa o objeto de investigação. A categoria experiência é outro momento incontornável da exposição da noção thompsoniana de determinação, na medida em que ela permite captar a maneira com que as relações de produção fixam limites e exercem pressões sobre a consciência social (6) (WOOD, 2003, p. 96).

    Uma vez que Thompson (2016, p. 405) destaca a forte interlocução com Raymond Williams para a reflexão sobre a noção de determinação, é forçoso, ao menos, indicar aspectos da formulação deste último. Williams (1979, p. 88), ao retornar à etimologia da palavra inglesa determine ["setting bounds" or "setting limits"]--tradução do alemão bestimmen--define determinação, do ponto de vista dos condicionadores da agência, como "fixação de limites" e "exercício de pressões". Para o autor "a questão-chave é precisar a proporção em que as condições 'objetivas' são consideradas como externas" (ibid, p. 89), isto é, a intensidade de tais limites e pressões em relação à agência (7).

    Por conseguinte, a determinação comporta contradição, de sorte que não se impõe à processualidade histórica como necessidade de ou efeito de, mas como estabelecimento de limites e exercício de pressões que estruturam os processos históricos, ao conferir-lhes, em certa medida, lógica e causalidade. Portanto, determinação não é a

    (...) programação predeterminada ou a implantação da necessidade, mas nos seus sentidos de "estabelecimento de limites" e "aplicação de pressões". Significa conservar a noção de estrutura, mas como atuação estrutural (limites e pressões) dentro de uma formação social que permanece protéica em suas formas. (THOMPSON, 1981, p. 125) Além disso, como exercício de superação de qualquer noção economicista de determinação, importa destacar que em Marx o capital é conceituado enquanto relação social de produção (WOOD, 2003, p. 23). Igualmente, deve-se observar o modo de produção como um "núcleo de características das relações humanas" (THOMPSON, 2014, p. 246), relações sociais necessárias de uma época. A imagem de um núcleo sugere que as relações de produção "moldam ou exercem pressões sobre todos os aspectos da vida social de uma só vez e todo o tempo" (WOOD, 2003, p. 62), razão pela qual o conceito de modo de produção deve ser apreendido como específico entrelaçamento entre o econômico e o "não-econômico" (valores, normas e formas culturais, etc). Assim, qualquer noção de determinação deve considerar que os "fenómenos sociais e culturais não correm atrás dos económicos após longa demora: estão, na sua origem, imersos no mesmo nexo relacional" (THOMPSON, 2002a, p. 167).

    A compreensão thompsoniana de determinação estabelece uma conexão complexa entre estrutura social e sujeito, porque não necessária; a própria estrutura é apreendida como relacional. O sujeito está inserido, portanto, em um plexo de relações que estruturam, sem pôr, sua agência. Se a determinação é o exercício de pressões e a fixação de limites, a agência não pode ser apreendida como efeito da estrutura, nela não pode, pois, sublimar-se. Há, portanto, um campo aberto entre a estrutura e o sujeito, no qual subsiste a historicidade. Daí porque Thompson (1981, p. 112) vai pensar a história em termos de processo estruturado e aberto; a determinação não contém a ação dos sujeitos como um efeito de si, exerce-se, antes, enquanto estruturação através da qual a agência consubstancia a processualidade histórica de modo contraditório, porque não necessária ou não imanente a. A proposta de Thompson de um processo estruturado engendra um problema ao conhecimento histórico quanto à apreensão da estruturação--o que estrutura o processo histórico--que se desdobra, por sua vez, na indagação quanto à sua processualidade--o seu fator de movimento. Vejamos a explicitação de tal problema na observação de Wood quanto ao papel da luta de classes no conhecimento histórico:

    O primeiro princípio do materialismo histórico...

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