O Direito Internacional Sanitário e seus temas: apresentação de sua incômoda vizinhança

AutorGuido F. S. Soares
Páginas49-88
O DIREITO INTERNACIONAL SANITÁRIO E
SEUS TEMAS: APRESENTAÇÃO DE
SUA INCÔMODA VIZINHANÇA
Guido F. S.
Soares(*)
I. INTRODUÇÃO
Neste final de século, as tendências de o Estado cada vez mais assu-
mir funções regulatórias em campos crescentes da vida da sociedade, que
começaram a ser vislumbradas no final do século XIX, com a Revolução
Industrial,
se tornam de tal maneira patentes que passam a configurar as
funções normais do Poder Público. No modelo de organização societária
que imperava nos séculos imediatamente anteriores ao atual, ou seja, do
État Gendarme, os Poderes Públicos agiam qual um desarmado policial de
quarteirão, que somente interviria com o uso dos poderes coercitivos (inclu-
sive com os poderes de intervenção através de normas regulamentares), no
caso de grave perturbação da ordem pública, e com a finalidade de estabele-
cer uma ordem natural que as forças do mercado livre deveriam regular. Na
filosofia do mais puro liberalismo, o campo de atuação do Estado era deixa-
do,
preferencialmente, para ocasiões excepcionais, quando a iniciativa
pri-
vada era inoperante ou quando seu exercício viesse a causar malefícios a
toda a sociedade. Assim, os temas relacionados à saúde constituíam um
assunto deixado à iniciativa particular, portanto, sob o jogo livre das forças
do mercado, onde nem sempre os incentivos capitalistas motivariam uma
ação dos particulares em face das necessidades sociais.
O conceito de saúde pública, entendida como o propiciamento de
con-
dições mínimas de sanidade, e enquanto um conjunto de obrigações que
deve incumbir ao Estado, mal caberia em tal concepção de organização so-
cietária, onde o intervencionismo estatal era olhado com desconfiança.
Con-
forme se pode observar na história dos séculos anteriores, somente em si-
(*) Professor Titular de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da USP. Ministro
Con-
selheiro do Quadro Especial da Carreira Diplomática do Brasil, tendo servido inclusive na Missão
Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas e outras organizações sediadas em
Genebra, tendo sido Delegado brasileiro em várias reuniões da Organização Mundial da Saúde e
Integrado a Delegação brasileira nas sessões de 1995, 1996 e 1997 da Assembléia Mundial da
Saúde.
tuações de extrema necessidade, tais como durante os surtos de epidemias
(os vários surtos de peste negra ou de cólera, na Europa), ou em ocasiões
de imediato pós-guerra, ou ainda de falta de alimentos, o Estado se permiti-
ria intervir no mercado, estabelecer normas de controle de atividades produ-
tivas,
de movimentos de pessoas e bens e de algumas outras atividades
relevantes na sociedade, sempre com a idéia de que o campo da regulamen-
tação da economia era um assunto queo deveria caber nas funções do
Governo; por outro lado, a idéia fundamental era de que o intervencionismo
deveria cessaro logo cessassem as condições que teriam motivado a in-
tervenção do Estado.
A nossos olhos, de homens do século XX, circundados por um Estado
com poderes intervencionistas cada vez mais abrangentes e poderosos,
pareceria absurdo pensar que os hospitais, a previdência social, a higiene
pública (inclusive os serviços de tratamento de águas servidas, de esgotos
e de lixo doméstico ou hospitalar) seriam campos onde o Estadoo de-
veria intervir! De igual forma, a regulamentação jurídica do trabalho,
tan-
to no que respeita às próprias relações entre empregado e empregador
quanto às condições de sanidade do tipo e do local do trabalho, era as-
sunto deixado à livre pactuação entre os interessados, sem que o Estado
se desse conta da necessidade de sua intervenção, num campo minado por
extrema injustiça, onde as negociações se davam entre pólos totalmente
desiguais.
Acreditamos que a emergência de um Direito Sanitário, como um cor-
po de regras de Direito Público e sistematizadas, coincide com a instituição
do Estado do bem-estar (Welfare State), com seus poderes regulatórios cada
vez mais abrangentes, a ponto de englobar todos os aspectos da vida socie-
tária.
As explicações para o fenômeno do agigantamento da esfera dos inte-
resses públicos, em detrimento de um sistema jurídico voltado à proteção
prioritária dos interesses dos particulares, a nosso ver, devem ser buscadas
numa tendência secular de o poder, inerentemente, concentrar-se cada vez
mais,
de parcela em parcela cedida pelos particulares, num jogo de cessão
de liberdades individuais, em benefício da atuação do Estado(1); por outro
lado,
ao término de uma situação catastrófica que tinha exigido a interven-
ção decisiva dos Poderes Públicos (como foi caso das duas guerras totais
do século XX), os indivíduos e empresas particulareso pensaram em re-
tomar aquelas parcelas de poder que tinham cedido ao Estado, em caráter
de urgência, ouo teriam condições de fazê-lo(2).
(1) Veja-se, de Bertrand de Jouvenel, "Du Pouvoir, Histoire Naturelle de sa Croissance", Paris,
Hachette, 1972.
(2) O fato de as autoridades públicas saírem com poderes cada vez mais extensos após aconteci-
mentos traumáticos, como foram as guerras totais do século XX, encontra-se multo bem funda-
mentado em Julien Freund, "L'Essence du Politique", Paris, Sirey, 1985, que se apóia na observa-
ção de que parcelas de poderes acrescidas ao Estado, e que passam a integrar o campo do "co-
mando da autoridade", correspondem a parcelas de "obediência" que os indivíduos lhe cederam,
portanto, uma explicação dialética da origem do poder.
Como já observamos em trabalho anterior(3): de todo interesse ob-
servar que a pessoa que reconheceria de maneira clara e objetiva tal cresci-
mento secular do poder seria, não um Stalin ou um Mao Tsé-Tung, ou um
dirigente de um país sem um Legislativo respeitável ou de fachada, mas nada
menos do que um dirigente de um Estado, modelo do capitalismo, o Presi-
dente Harry Truman, dos EUA, que teria dito, em 1953, que os poderes do
Presidente fariam um
Cesar,
Gengis Kahn ou um Napoleão 'roer as unhas de
inveja'
('bite
his nails with envy')"(4).
Entenda-se, pois, o Direito Sanitário como um conjunto de normas,
que,
na concepção corrente do Direito, cabe como obrigação institucional ao
Estado, restando a esfera de atuação dos particulares como um campo
resi-
dual,
a qualquer momento reivindicável pelos Poderes Públicos. Tal é a
con-
seqüência do intervencionismo atual do Estado em qualquer setor da vida
societária, em particular no que se refere à saúde pública, que a maioria das
Constituições modernas considera, textualmente, como campo prioritário dos
Poderes Públicos.
Por outro lado, o Direito Sanitárioo pode deixar de sentir as influên-
cias de fenômenos quem marcado sua emergência, e queo o traço
característico do século XX: a internacionalidade, ou como tem sido, nos
últimos anos, denominada: a globalização. As extraordinárias facilidades de
transportes, se por um lado propiciam um movimento internacional de pes-
soas e mercadorias, facilitam, igualmente, as transmissões de doenças; a
tecnologia industrial, a um ritmo desenfreado, polui rios e lençóis freáticos
transfronteiriços e lagos internacionais, e a regutamentação de seus efeitos
no meio ambiente se torna uma questão a ser resolvida em nível internacio-
nal.
Os inacreditáveis avanços das telecomunicações, ao lado de seus
efei-
tos benéficos, igualmente internacionalizam padrões culturais de culto à vio-
lência,
ao consumerismo e à boçalidade nos padrões comportamentais, com
reais efeitos quanto ao espraiamento de problemas psicossociais (sem que
se difundam, paralelamente, as técnicas de lidar com eles, conforme exis-
tentes nos países de exportação daquela banalização da violência, do
con-
sumerismo e da vulgaridade cultural). Globalização, em tal sentido, signifi-
caria duas realidades concomitantes, que decisivamentem influído em to-
dos os campos jurídicos: a) uma invasividade das regulamentações jurídi-
cas em todos os campos da vida em sociedade (como já se apontou, conse-
qüência do crescimento secular do poder do Estado), portanto, um fenôme-
no de horizontalidade, e b) uma quebra das distinções entre as esferas juridi-
camente regulamentadas, no que respeita aos fatores interno e internacio-
nal,
ou seja, na atualidade, encontram-se esmaecidos os poderes domésti-
cos dos Estados, em favor de normas originárias de fontes internacionais,
(3) Guido F. S. Soares, "Os Órgãos das Relações Exteriores dos Estados e as Formas de Diploma-
cia na Atualidade", in Revista da Faculdade de Direito da USP (no prelo).
(4) Citação apud Louis Henkin, "Foreign Affairs and the Constitution", Nova York, The Norton Libra-
ry, W. W. Norton & Company Inc., 1975, p. 278.

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