O estado, o direito e a luta dos trabalhadores: o debate liberal e a critica marxista/The State, the Law and the struggle of workers: liberal discussion and marxist critique.

AutorBruziguessi, Bruno

Introducao

A teoria politica voltou-se para o debate da constituicao e das caracteristicas do Estado moderno, sobretudo a partir da ascensao de um pensamento liberal, emergido no bojo da propria sociedade democratico-burguesa no seculo XVIII. Tendo como fundamento essencial desta vertente de pensamento a defesa da propriedade privada, tida como condicao para a consolidacao da liberdade e seguranca dos individuos em sociedade, agora composta por "homens livres", esta liberdade passou a ser reconhecida legalmente atraves da legitimacao do Estado.

No campo da teoria social, Karl Marx--com recorrentes contribuicoes de Friedrich Engels--trouxe como fundamento de sua reflexao acerca do Estado e da politica o carater de classe que transpassa as instituicoes politico-juridicas, desmistificando uma suposta neutralidade que poderia existir nas esferas da superestrutura da sociedade.

Desta forma, a grande contribuicao da tradicao marxiana para a constituicao da teoria politica foi o carater de classe do Estado, permeado pela constante luta entre as classes sociais antagonicas e inconciliaveis, sendo determinada, a priori, pelas relacoes sociais de producao, que determinam qual a classe social economicamente dominante, sendo, desta forma, tambem a classe politicamente dominante.

A partir da teoria social ancorada na tradicao marxista, construiremos uma reflexao critica acerca do Estado e do complexo juridico, a que nos referimos como o conjunto de instituicoes juridicas e legais, alem da compreensao do Direito como ideologia que permeia e, ao mesmo tempo, extrapola os limites deste complexo.

Este e o ponto basilar para a compreensao do processo das lutas sociais desencadeadas pela classe trabalhadora, pela conquista de direitos frente a este Estado, pois a questao dos direitos remete necessariamente a uma sociedade desigual, onde o Estado nao e universalista na representacao dos interesses e necessidades de reproducao social dos individuos.

Assim, faremos apontamentos da reflexao de Marx acerca do debate da emancipacao politica e humana, permeadas pela relacao Estado/sociedade, na qual, alem dos desafios estruturais postos a reproducao da vida social dos trabalhadores, ha uma correlacao frente ao Estado para a conquista de direitos elementares. Explicitando os obstaculos enfrentados pelos trabalhadores no processo das lutas sociais frente ao complexo juridico e a disseminacao ideologica que completa o aparato institucional, sobrevoando a sociedade com a ideia de "verdade", corroborando as acoes juridico-legais frente a consolidacao dos direitos, situados na dualidade conquista/concessao propria dessa dinamica societaria.

Vale ressaltar que esta reflexao, no campo da tradicao marxista, limitase a uma abordagem marxiana e de autores que se fundamentaram de forma mais ortodoxa nas contribuicoes de Marx, como Lenin e Lukacs. Assim, nao iremos abordar o pensamento social de Antonio Gramsci, que trouxera contribuicoes determinantes para a formulacao de uma "nova teoria marxista do Estado", compreendendo a realidade de sociedades mais complexas.

  1. O debate liberal, o conceito de Estado e o Direito como ideologia

    Sera de grande importancia para a elucidacao de nosso objeto a forma com que a funcionalidade do Estado capitalista/burgues vai se transformando de acordo com o processo de desenvolvimento das forcas produtivas, dos embates entre as classes antagonicas, envoltas, sobretudo, em uma disputa de hegemonia por projetos de classes que se opoem e tambem das especificidades das formacoes sociais.

    Com isso, a compreensao de como este Estado vai assumindo caracteristicas diferentes, de acordo com o proprio desenvolvimento das relacoes sociais de producao, nos fazendo retomar, primeiramente, o desenvolvimento do proprio pensamento burgues acerca da funcao do Estado, tornando-o mais democratico ou mais ditatorial, mais ou menos intervencionista de acordo, exatamente, com a correlacao de forcas entre as classes sociais. Esta correlacao esta diretamente relacionada ao processo de desenvolvimento das forcas produtivas e a caracteristica autodestrutiva--mas tambem "autoregenerativa"--do modo de producao capitalista.

    Assim, partimos do seculo XVIII, que foi marcado pela disputa entre a Coroa e o Parlamento nos paises europeus. A primeira representava o resquicio de uma monarquia cada vez mais enfraquecida, economica e politicamente; ja o segundo surgia como uma expressao ideologica liberal burguesa que pautava a necessidade da existencia de um parlamento. Tudo isso so foi possivel com a transformacao do modo de producao que vinha ocorrendo, de maneira mais consistente desde o seculo XVI, com uma burguesia ascendente acumulando capital atraves da expansao maritima e do arrendamento das terras expropriadas dos camponeses e da Coroa. E neste contexto que se dara a transformacao do carater de dominacao do Estado na passagem de uma sociedade feudal-absolutista para uma sociedade capitalista-liberal. E atraves do pensamento liberal classico que compreenderemos a constituicao do Estado moderno, que teve em John Locke um dos principais expoentes intelectuais.

    Locke e um intelectual que, seguindo uma linha individualista, afirma que os homens viviam originalmente num estagio pre-social e pre-politico, que se caracterizava pela mais perfeita liberdade e igualdade entre estes homens. Assim, denominava-se o "estado de natureza", considerado pelo autor como um periodo de harmonia. E deste periodo da humanidade que o homem desfrutava da propriedade, designada pela vida, pela liberdade e pelos bens do homem, como um Direito natural.

    Mas, segundo o pensamento de Locke, a harmonia do "estado de natureza" pode ser ameacada, ou seja, o direito de propriedade pode entrar em risco a medida que nao exista uma legislacao, nem um juiz imparcial e nem sequer uma forca coercitiva para garantir a efetivacao das sentencas. Desta forma, a propriedade entra em risco e os individuos entram no que Locke chama de "estado de guerra".

    A partir das elaboracoes de Locke, e na tentativa de preservar a propriedade individual que surge o contrato social, o qual evitaria o "estado de guerra" e garantiria a passagem de um "estado de natureza" para a sociedade politica ou civil. Este contrato social garantiria a formacao de um corpo politico com legislatura e poder judiciario, resguardando a comunidade de ameacas internas--entre os proprios individuos, que levaria a um "estado de guerra"--e externas.

    Assim se forma o Estado civil e, para Locke, independente da forma que sera escolhida, a finalidade de qualquer governo e a preservacao da propriedade. Para isto, define o Poder Legislativo como o "poder supremo", aquele que esta acima dos demais poderes--o Poder Executivo e o Poder Federativo. Isto se configura como o controle do executivo por parte do legislativo.

    Na formulacao de Locke acerca dos poderes, ha certo destaque ao Legislativo em detrimento do Executivo, no sentido de esfera de poder, pois e na legislatura que se formulam as normas e regras de conduta de uma sociedade que irao gerir a vida social. Ja o Executivo sera o responsavel por efetivar estas normas. Vale colocar que Locke nao evidenciou o Poder Judiciario em sua obra. Desta forma e possivel definir, por meio de um "poder julgador", as formas de punicao para determinadas formas de transgressao as leis estabelecidas, sejam entre individuos da mesma sociedade ou quando um individuo e lesado ou ameacado por sujeitos externos, de outras sociedades--dai tambem a referencia a guerra--, expressando sempre a finalidade de manutencao da propriedade.

    Assim, o Legislativo se torna de grande importancia por ser onde se elabora o carater das leis, onde ocorrera a disputa de interesses--dependendo da forma de governo--dentro deste Estado. Mas tambem agira como poder julgador, juntamente com o Executivo. Locke nao faz a separacao clara dos poderes, pois localiza a separacao entre o legislativo e o executivo, mas, ao mesmo tempo, os mantem ligados por conta deste "poder julgador", que esta imbricado aos demais poderes.

    Ao mesmo tempo em que nao deixa clara esta separacao, ele faz indicativos da necessidade destes poderes quando afirma que uma sociedade civil ou politica so se efetiva com a preservacao da propriedade e isto nao existe no "estado de natureza".

    Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante consentimento comum, como padrao do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controversias entre os homens. [...] Em segundo lugar, no estado de natureza falta um juiz conhecido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissensoes, de acordo com a lei estabelecida. [...] Em terceiro lugar, no estado de natureza frequentemente falta poder que apoie e sustente a sentenca quando justa, dando-lhe a devida execucao (LOCKE in: WEFFORT, 1991, p. 99). Segundo Locke, quando a lei nao for suficiente para garantir a conservacao da propriedade aos individuos, o poder supremo podera recorrer a forca. Sempre quando ha a eminencia de um "estado de guerra", quando a propriedade individual e ameacada, a forca podera ser utilizada, uma vez que a lei nao podera ser cumprida. Nesta perspectiva liberal, caso a propriedade seja fortemente ameacada, e passivel a dissolucao do governo, tratado neste caso como despotico, e a reconstrucao da sociedade civil e da propriedade.

    Outro pensador liberal, Montesquieu, se deteve nao em analisar a relacao dos homens entre si, mas a relacao destes individuos com as leis. Assim, ele analisa as instituicoes que regem o comportamento humano, estudando as dimensoes do Estado, a organizacao do comercio e a relacao entre as classes atraves da Ciencia Politica. Para este pensador, as leis entre os homens devem ser consideradas em dois momentos: as relacoes entre os homens, chamadas de direito civil, e as relacoes entre o governo e seus governados, denominadas de direito politico. Desta forma, Montesquieu esta mais preocupado em analisar as...

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