O direito na obra pre-carceraria de Gramsci: do programa minimo de direitos a resistencia ao fascismo/Law in Gramsci's pre-prison work: from the minimum programme of rights to resistance to fascism.

AutorSoares, Mois
  1. A fragmentariedade e a potência do pensamento gramsciano: a força de seus textos de intervenção política

    Se a obra principal de Gramsci, Quaderni del Cárcere, não alcançou um grau de sistematização pretendido pelo próprio autor em sua jornada inconclusa de reestruturação em cadernos especiais, restando fragmentada em potentes notas mais ou menos agrupadas, o mesmo não se poder dizer de seus escritos pré-carcerários. Neles, por sua própria natureza de intervenção política imediata, não havia sequer o aventar de um projeto de organicidade teórica, os conceitos eram forjados pela necessidade de responder a dilemas concretos do projeto revolucionário em curso e mesmo das miudezas da práxis cotidiana do movimento operário.

    A grande marca desse período histórico (1914-1926) é a construção teórica para orientar uma estratégia e o exercício do poder pelo proletariado, e não, propriamente, embora existam elementos e traços que possam ser capturados, de uma teoria (geral) materialista do Estado. A noção de hegemonia (1) em Gramsci já se faz presente in statu nascendi (2) neste momento, que encontraria seu momento culminante de laboratório da práxis e aceleração da história na experiência fértil das lutas sociais, apesar da grande derrota, no cenário do biênio vermelho. Posteriormente, o marxista italiano já possui a leitura de que não serão mais anos de ascensão do movimento comunista e de que o modelo revolucionário russo não poderia ser transposto facilmente. Seriam anos de formulação e resistência até o ápice do cerco com sua prisão em 1926.

    É possível observar facilmente que esses anos demarcados por sua produção política mais imediata não são tempos de "normalidade" institucional. Trata-se de um hiato temporal atravessado pela primeira guerra mundial, por insurreições operárias, pela ascensão do fascismo, que destruiria qualquer aspiração de uma luta "democrática" com a formalização da ilegalidade dos partidos comunistas em 1926. Portanto, há que sublinhar que, antes da prisão, os anos mais férteis em que se poderia flertar e teorizar entre a luta no âmbito institucional e na ilegalidade se deram até 1922 (ano da marcha sobre Roma). Após este fato as reflexões sobre o direito diminuem sensivelmente e apenas são retomadas com força no desenvolvimento da teoria da hegemonia nos Cadernos do Cárcere.

    Nesse sentido, dentro da imensidão de textos de conjuntura, pode-se extrair três graus de contribuições para a análise do fenômeno jurídico: 1) a discussão em torno de um consenso sobre um programa mínimo de direitos liberais com os partidos da ordem, mas que não pode se tornar em fetiche ou programa máximo; 2) a tese sob a limitação de uma luta jurídica através de formas contratuais (em especial, o sindicato), bem como o conflito entre uma legalidade industrial e sua negação através de outra normatividade--o coração teórico deste período; 3) a análise, sobretudo, na luta política reacionária da dinâmica entre legalidade e ilegalidade (subversivismo reacionário), porém incipiente em termos de crítica do direito no sentido geral.

  2. Do programa mínimo dos direitos liberais ao programa máximo socialista no laboratório da práxis de Gramsci

    Desde seu período de formulação mais precoce, Gramsci sempre andou no fio da navalha. Isso não significa dizer que Gramsci negasse posturas radicais ou mais pragmáticas. Na verdade, ele queria potencializar uma síntese entre as duas posições políticas que se faziam dominantes na disputa interna do Partido Socialista Italiano (PSI) naquele momento. De alguma forma, o reformismo lhe parecia uma doença senil do maximalismo e, invertendo os termos, o maximalismo uma doença infantil do reformismo (3). Num contexto de guerra imperialista, onde quem, de fato, sangrava nas trincheiras eram os trabalhadores, a ele parecia, mesmo ainda muito jovem, impensável a incapacidade dos socialistas de se posicionarem frente aos problemas reais. Em resumo, deve-se possuir a potência da radicalidade, mas, igualmente, é obrigatório ser efetivo em sua práxis política na vida do povo.

    É nesse intricado debate que surge, já em seus primeiros escritos, uma marca que carregaria até os Quaderni, isto é, não considerará o direito como um conjunto de princípios de justiça a-históricos, um direito natural, embora já observe, embrionariamente, sua capacidade de propulsão ideológica. Assim, para o marxista sardo, o defeito orgânico das utopias está todo aqui: acreditar que a previsão possa ser previsão de factos, enquanto só o pode ser de princípios ou de máximas jurídicas. "As máximas jurídicas (o direito é a moral actuada) são criações dos homens como vontade. Se quiserem dar a esta vontade certa direcção, ponham-lhes como finalidade o que só pode sê-lo". Ainda, avalia que a revolução francesa não lutava pela constituição da ordem capitalista em abstrato, mas "queriam actuar os direitos do homem, queriam que fossem reconhecidos os componentes da colectividade determinados direitos." (4).

    Então, direito não significa qualquer ideal de justiça absoluta, porque "se alguma coisa esta guerra eliminou com certeza foi à velha concepção da justiça absoluta, que se impõe por si e não tem necessidade de canhões ou de baionetas para se manter" (5). Nesse sentido, o direito não é mera normatividade formal, tampouco é moralismo abstrato e sem força. O marxista sardo, portanto, opera em proximidade com um conceito bastante tradicional de luta pelo direito típico de seu tempo e exalta, num dos seus primeiros escritos de intervenção, onde falava em uma neutralidade ativa, que a "cômoda posição de uma neutralidade absoluta não nos faça esquecer a gravidade do momento e não faça que nos abandonemos, nem sequer por um instante, à ingênua contemplação e renúncia budista de nossos direitos" (6).

    Embora não faça nenhuma inovação no campo da crítica do direito, em particular no que se refere à forma jurídica, Gramsci formulara um programa mínimo sobre os quais não se poderiam ter grandes ilusões: os direitos liberais. Isto é, "as afirmações do liberalismo são ideias-limites que, reconhecidas racionalmente necessárias, se transformaram em ideias-força, realizaram-se no Estado burguês, serviram para suscitar a este Estado uma antítese do proletariado e desgastaram-se. Universais para a burguesia, não o são suficientemente para o proletariado. Para a burguesia eram ideias-limite, para o proletariado são ideias mínimas" (7). Deste modo, o marxista sardo salienta a insuficiência do programa liberal, até porque não é constituinte do projeto político de sua classe, visto que pressupõe a exploração de grandes massas trabalhadoras, contudo não o rechaça como um conjunto de abstrações, materializadas em direitos, totalmente desnecessárias para a luta proletária.

    Por isso, compreende o liberalismo como uma "fórmula que compreende toda uma história de lutas, de movimentos revolucionários para a conquista das liberdades individuais. É a forma mentis que se foi criando através destes movimentos". Tal convicção ideológica, expressada nos processos de reivindicação, residiria "na livre manifestação das próprias convicções, na livre explicação das forças produtivas e legislativas do país" (8). Tais direitos não provêm de milagres políticos ou abstrações vazias, eles são resultados de "lutas políticas na rua e que o direito à livre afirmação de todas as energias é um direito conquistado e não um direito natural" (9).

    Para Gramsci, neste estágio de desenvolvimento de sua teoria, o direito comportaria a condensação das lutas sociais na ordem burguesa. Por esta via, em seu programa legítimo, "os socialistas não devem substituir ordem por ordem. Devem instaurar a ordem em si. A máxima jurídica que eles querem realizar é: possibilidade de actuação integral da própria personalidade humana, concedida a todos os cidadãos. Com o concretizar desta máxima, caem todos os privilégios constituídos. Concede-se a máxima liberdade com o mínimo de pressão". Um princípio que lembra bastante a formulação de Marx na Crítica ao Programa de Gotha (10), mas que possui um potencial utópico concreto a Ernst Bloch (11) gigantesco. Contudo, Gramsci termina o parágrafo afirmando: "Isto, repetimos, não é utopia. É universal e concreto, pode ser actuado pela vontade. É princípio de ordem, da ordem socialista" (12).

    Para explicar essa luta de classes estruturada em direitos, Gramsci, em interessante artigo, A Tua Herança de 1918, utiliza um dos principais institutos jurídicos de acumulação de propriedade como uma metáfora político-jurídica: o direito de herança. Compara a noção de herança burguesa, estruturada em torno da transmissão de propriedade privada entre gerações, a uma herança proletária gerada pelas conquistas de lutas sociais de gerações cristalizadas na história. Assim:

    Os teus ascendentes, que fizeram a revolução contra o feudalismo, deixaram-te, em herança, o direito à vida (não te podem matar arbitrariamente: parece-te coisa pequena?), a liberdade individual (para te prenderem deves ser julgado culpado de um crime), o direito de movimento para trabalhar numa terra em vez de noutra. Além das heranças da tradição liberal, a luta dos trabalhadores também tem deixado outra morfologia de heranças: "a liberdade de fazer greve, a liberdade de associar-te com outros para discutir os teus interesses imediatos e para te propores, em comunhão com outros, o objetivo maior da tua vida: a liberdade para ti ou, pelo menos, para os teus descendentes" (13).

    Por esta via, Gramsci defende que o proletário deve trabalhar em prol da única herança que, realmente, importa para construir as alternativas históricas de libertação da classe como um todo: "em vez de uma propriedade individual, preocupa-te em deixar maior possibilidade para o advento da propriedade coletiva, da liberdade para todos, para que todos sejam iguais em relação ao trabalho, ao instrumento de trabalho" (14). Tais "direitos hereditários" estão, estritamente, ligados a uma ampliação de participação em três frentes...

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