Direito e prudência na fronteira do controle: uma análise da jurisprudência do supremo tribunal federal sobre os limites do controle judicial dos atos do presidente da república

AutorJulia Luciana Oliveira Martel de Almeida
Páginas47-107
DIREITO E PRUDÊNCIA NA FRONTEIRA DO CONTROLE:
UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL SOBRE OS LIMITES DO CONTROLE
JUDICIAL DOS ATOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
JULIA LUCIANA OLIVEIRA MARTEL DE ALMEIDA
Resumo
A definição dos limites do controle judicial dos atos privativos do presi-
dente da República envolve debates clássicos, travados no direito cons-
titucional e no direito administrativo, sobre a extensão da intervenção ju-
dicial que deve ser aplicada aos atos de caráter político cuja competência
foi alocada constitucionalmente a outros poderes. No contexto brasileiro,
identificam-se certas doutrinas que potencialmente se aplicam a essa ca-
tegoria de atos, para excluí-los do controle judicial ou para limitar a intensi-
dade desse controle. Este trabalho busca identificar, por meio de pesquisa
empírica, a quais dessas doutrinas o Supremo Tribunal Federal (STF) vem
aderindo na sua jurisprudência sobre as limitações ao controle judicial inci-
dente sobre os atos do presidente da República e quais critérios orientam
a sua aplicação. Identificou-se um alinhamento do STF à ideia de exclusão
de certas questões do controle judicial, orientada por considerações rela-
cionadas à natureza do ato impugnado e a uma delimitação dos seus as-
pectos discricionários. Apesar disso, diversas inconsistências e incertezas
foram identificadas na aplicação dessas teorias. Ao final, buscou-se traçar
algumas implicações negativas, tanto do ponto de vista do Direito quanto
do ponto de vista da posição institucional do STF, que decorrem dessa
forma de aplicação das teorias de limitação.
Palavras-chave
Atos presidenciais. Controle judicial. Separação de poderes. Autoconten-
ção. Questões políticas. Discricionariedade.
Abstract
Defining the boundaries of judicial review of presidential action requires fa-
cing classical debates about the due extent of judicial intervention in poli-
tical questions whose solution has been allocated to other branches by the
Constitution. In Brazil, certain doctrines, which are potentially applicable to
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presidential action, prescribe an a priori exclusion of certain questions from
judicial review or a restriction in the intensity of judicial scrutiny. This pa-
per seeks to find out, through empirical research, which of these doctrines
the Brazilian Supreme Court has adopted in defining the limits applicable to
judicial review of the President’s acts, and which criteria guide their appli-
cation. We have found that the Supreme Court generally adopts the idea
of an a priori exclusion of certain questions from judicial review, guided by
considerations of the nature of the act under analysis and of its discretionary
aspects. Apart from that, however, several inconsistencies and obscurities
have been found in the way these doctrines have been applied. The paper
concludes by presenting some negative implications, both legal and institu-
tional, of this form of application of theories of self-restraint.
Keywords
Presidential action. Judicial review. Separation of powers. Self-restraint.
Political questions. Discretion.
1. INTRODUÇÃO
Os dilemas envolvidos no controle de constitucionalidade da produção
legislativa já foram amplamente explorados, tanto no Brasil quanto na li-
teratura internacional. Contudo, nos sistemas presidencialistas em que o
Judiciário assumiu papel de relevância no controle da atividade política,
existe uma tensão, também latente, mas menos discutida, entre esse con-
trole e o poder exercido pelo presidente da República.
Amostras desse embate tornaram-se presença constante nos jornais
no Brasil recentemente, desde que o presidente Jair Bolsonaro passou a
manifestar publicamente ataques e ameaças ao Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) e este passou a reagir de forma mais ativa. Bolsonaro já ata-
cou ministros verbalmente,1 apresentou pedido de impeachment contra
um deles,2 participou de atos que pediam o fechamento do Tribunal3 e
1 Bolsonaro ataca Alexandre de Moraes e diz que não cumprirá mais decisões do minis-
tro do STF, G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/07/
bolsonaro-ataca-alexandre-de-moraes-e-diz-que-ministro-tem-tempo-para-se-re-
dimir-ou-se-enquadra-ou-pede-para-sair.ghtml. Acesso em: 28 nov. 2021; Bolsonaro
xinga Barroso, repete ataques e diz que parte do STF quer volta da corrupção, Fo-
lha de São Paulo. Disponível em: Nhttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/
bolsonaro-repete-ataques-diz-que-parte-do-stf-quer-volta-da-corrupcao-mas-ne-
ga-ter-ofendido-ministros.shtml. Acesso em: 28 nov. 2021.
2 Investigado, Bolsonaro apresenta pedido de impeachment do ministro do STF Ale-
xandre de Moraes, Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/investi-
gado-bolsonaro-apresenta-pedido-de-impeachment-do-ministro-do-stf-alexandre-
de-moraes-1-25164551. Acesso em: 28 nov. 2021.
3 Bolsonaro volta a apoiar ato antidemocrático contra o STF e o Congresso, em Brasília,
G1. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/05/03/bolsonaro -volta-
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ameaçou descumprir as suas decisões.4 Do outro lado, o STF conduz cinco
inquéritos que têm o presidente como investigado, um dos quais apura
notícias falsas e ataques ao próprio Tribunal que vêm sendo veiculados na
internet. Além disso, o Tribunal tem tomado decisões que vão de encon-
tro a algumas das medidas adotadas por Bolsonaro desde o início da pan-
demia – por exemplo, a ADI no 6.421,5 em que se entendeu que a decisão
sobre a adoção de medidas restritivas contra a Covid-19 cabe aos três
níveis da federação, em um momento em que o governo federal buscava
reivindicar essa competência de forma exclusiva para impedir o fecha-
mento de estabelecimentos, e o MS no 37.097,6 em que o ministro Alexan-
dre de Moraes suspendeu a nomeação de diretor da Polícia Federal, em
meio a alegações de que essa havia sido feita com a finalidade de intervir
na instituição.
Como se vê, os conflitos manifestam-se em diferentes arenas, mas
decorrem de uma mesma origem: a tensão que desponta de um sistema
em que se atribuem prerrogativas ao presidente para definir os rumos da
política nacional conforme seus objetivos políticos e, ao mesmo tempo,
em que se dá ao Judiciário o poder de intervir em atos dos outros pode-
res de forma independente, na expectativa de que monitore sua conformi-
dade com a ordem legal.
Nesse contexto, definir qual papel deve ser assumido pelo Judiciá-
rio como fiscal da legalidade dos atos do presidente da República pressu-
põe enfrentar as tradicionais discussões sobre a legitimidade democrática
do Judiciário para intervir em atos de poderes políticos e sobre os limites
impostos pela separação de poderes a esse exercício. Há, no entanto, cer-
tas particularidades implicadas quando se trata da Presidência.
Primeiro, porque a Constituição confere a essa autoridade o poder de
tomar certas decisões de caráter marcadamente político relacionadas à
sua função de condução da política nacional, como a escolha de seu corpo
de ministros e o veto a projetos de lei. Em alguns casos, a desnecessidade
de anuência do Legislativo poderia indicar que se trata de uma decisão
soberana do Executivo; em outros, pelo contrário, a possibilidade de con-
trole pelo Legislativo poderia em si indicar ilegitimidade de intervenção
judicial. De qualquer forma, a intervenção judicial, nesses casos, parece
a-apoiar-ato-antidemocratico-contra-o-stf-e-o-congresso-em-brasilia.ghtml. Acesso em:
28 nov. 2021; Cartazes golpistas de atos bolsonaristas atacam STF e Moraes até
em inglês, espanhol e francês. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/
2021/09/cartazes-golpistas-de-atos-bolsonaristas-atacam-stf-e-moraes-ate-em-ingles-
espanhol-e-frances.shtml. Acesso em: 28 nov. 2021.
4 Bolsonaro ataca Alexandre de Moraes e diz que ‘não cumprirá’ decisões do ministro do
Supremo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-ataca-alexan-
dre-de-moraes-diz-que-nao-cumprira-decisoes-do-ministro-do-supremo-1-25187933.
Acesso em: 28 nov. 2021.
5 STF, ADI no 6.421, Plenário, rel. min. Luís Roberto Barroso, j. 21/05/2020.
6 STF, MS no 37.097, Monocrática, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 29/04/2020.

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